quinta-feira, 31 de julho de 2008

Cristianismo: fontes documentais #4


A história do texto escrito

Agora entramos no núcleo do problema do Novo Testamento: a tentativa de explicar o surgimento das primeiras leituras divergentes e a influência que elas exerceram em toda a transmissão do texto...

Quando o Cristianismo estava sob intensa oposição judaica e romana, as cópias dos livros do Novo Testamento nem sempre podiam ser preparadas sob as melhores circunstâncias. A exceção é Lucas, que era médico e provavelmente conseguiu recursos financeiros com Teófilo, para quem o seu Evangelho e o Livro de Atos são dedicados. Este mostra um grande cuidado no preparo dos seus textos. - É bem possível que Teófilo tenha financiado as primeiras cópias e influenciado a audiência seleta e mais numerosa dos livros. Todavia parece que nenhum outro escritor apostólico pôde dispor de tantos recursos em seus trabalhos literários. Paulo também era erudito, mas, além de parecer sofrer de deficiência visual, algumas epístolas ainda tiveram de ser escritas enquanto era prisioneiro, o que em certo sentido também aconteceu com João em relação ao Apocalipse. É óbvio, nessas circunstâncias, tanto Paulo quanto João, além de Pedro, utilizavam-se de assistentes. Contudo é bem pouco provável que fossem redatores profissionais.

Provavelmente as primeiras cópias passaram pelo mesmo problema, já que as cartas apostólicas eram enviadas a uma congregação ou a um individuo, e os Evangelhos foram escritos para serem entendidos por um público leitor em particular; - os autógrafos estavam separados e espalhados entre as várias comunidades cristãs e, ao serem copiados, não tiveram a oportunidade de receber um tratamento profissional. Por causa da situação financeira e da necessidade de reproduzir os textos, que tinham pouca durabilidade, além da rápida expansão do Cristianismo, as comunidades utilizavam copistas amadores e pessoas bem intencionadas. Paulo cita em sua Epistola aos Colossenses (4:16) uma carta à igreja de Laodicéia, da qual não temos nenhuma cópia. O texto parece indicar que havia troca de correspondências entre as várias igrejas ainda no período apostólico, mediante a elaboração e o envio de cópias.

Assim, os originais começaram a ser reproduzidos dentro do chamado período apostólico, e as primeiras pequenas variantes começaram por causa da falta de um revisor.

É claro que uma outra fonte de variantes era o próprio descuido na exatidão literal. Os cristãos não tinham a mesma preocupação que os judeus ao citarem o Antigo Testamento, estavam mais interessados no sentido do que no texto propriamente dito. Por isso, os Pais da Igreja citam muitas vezes o texto de maneira inexata, valendo-se de alusões e da memória. Que são, na realidade, variantes intencionais, a maior parte das variantes do texto sagrado dos cristãos. São correções com base na preferência pessoal, na tradição ou em algum relato paralelo.

Isso não quer dizer que os cristãos não considerassem o Novo Testamento como “Escritura Sagrada”. - Vemos que tanto o Novo quanto o Antigo Testamento são colocados no mesmo patamar de importância. - O apóstolo e primeiro grande líder da Igreja, Pedro, classifica alguns textos do apóstolo Paulo como “Escritura”. Possivelmente a primeira coleção de textos paulinos foi feita na Ásia Menor, no período apostólico. Na Epistola de Barnabé, no Didaquê e na carta escrita à Igreja de Corinto por Clemente (todas as três obras pós-apostólicas de regiões distintas, que eram antigos centros do Cristianismo) encontramos citações aos Evangelhos sinóticos, além de ao livro de Atos, e algumas Epístolas. Paulo escreve a Timóteo (5. 18) e cita o Evangelho de Lucas (10.7) e o livro do Deuteronômio (25.4), conferindo a mesma autoridade de Escritura a ambos.

O mais provável é que a maioria destas pequenas alterações tenha surgido como tentativas dos escribas em melhorar o texto, fazendo correções ortográficas, gramaticais, estilísticas e até mesmo exegéticas. Num período em que pipocavam muitas heresias por todo lado, certas palavras poderiam gerar má interpretação. Exatamente como ocorre hoje, seguidores de várias seitas buscavam enxergar na Bílbia afirmações que nunca estiveram ali, separando trechos do texto de seu contexto original. Assim, os copistas, salvaguardando a essência original do texto, faziam alterações de certas palavras ou expressões, mas nunca objetivando mudar o sentido. São Jerônimo, porém, chega a reclamar que as mudanças que os copistas realizavam, acabavam gerando mais erros.

Textos locais

Com a expansão do Cristianismo, várias cópias foram levadas a diversas regiões, cada uma com as suas próprias variantes, e ao passarem pelo processo de cópia mantinham as variantes e ainda se adicionavam outras. Desse modo, os manuscritos que circulavam numa localidade tendiam a assemelhar-se mais entre si que os de outras localidades. - Mesmo na mesma região era praticamente impossível que houvesse dois textos exatamente iguais. Todavia, certos grupos de manuscritos poderiam assemelhar-se uns aos outros mais intimamente que a outros grupos do mesmo texto local. Alguns textos poderiam se tornar mistos, quando os manuscritos podiam ser comparados a outras cópias de outros lugares, e corrigidos por elas. A tendência era de não misturar os textos.

Texto Alexandrino

A Alexandria superou Atenas, no período helenístico, tornando-se o centro mais importante de cultura do Mediterrâneo. Quem nunca ouviu falar na Biblioteca de Alexandria, com seus 700.000 volumes? Foi lá que os textos de Homero passaram pela primeira tentativa de edição crítica. Zenódoto de Éfeseo, primeiro diretor da biblioteca, comparou diversos manuscritos da Ilíada e da Odisséia, em 274 aC, tentando restaurar o texto original. Sem dúvida esse cuidado pode ter acabado por influenciar os cristãos da região, fazendo com que eles procurassem a excelência em seus textos. Faltavam, na região, as reminiscências pessoais e a tradição oral, o que teria aumentado a exigência quanto a exatidão do texto.

De qualquer forma, o texto alexandrino é considerado o melhor texto, com pouquíssimas modificações gramaticais ou estilísticas, cerca de 2% ou 3% apenas.

Texto ocidental

Nas regiões dominadas por Roma, desenvolveu-se outro tipo de texto, o chamado texto ocidental, bem diferente nos Evangelhos e principalmente em Atos, onde é quase 10% mais longo que a forma original, o que já faz supor a existência de duas edições desse livro.

A principal característica é o uso da paráfrase. Observa-se que palavras, frases e até pequenos trechos inteiros foram modificados. O motivo disso parece ter sido a harmonização, principalmente no caso dos Evangelhos sinóticos, ou mesmo o enriquecimento da narrativa com a inclusão de alguma tradição. Isso envolve, no entanto, apenas algumas poucas declarações e incidentes da vida de Jesus e dos apóstolos.

Textos de Cesaréia

Provavelmente tem origem no Egito, assim como o texto alexandrino, de onde teria sido levado para Cesaréia por Orígenes.

Texto Bizantino

Possivelmente, resultado da revisão de antigos textos locais feita por Luciano de Antioquia, pouco antes de seu martírio no ano de 312.


Unificação textual

Com a conversão de Constantino, em 312, entramos numa nova fase na história do Novo Testamento, principalmente com o Édito de Milão no ano seguinte, colocando o Cristianismo no mesmo patamar que qualquer outra religião do Império Romano (e não como a única religião do Império, como popularmente se acredita), ordenando que as propriedades confiscadas da Igreja fossem devolvidas. Com isso, houve um aumento considerável na circulação de textos sagrados, que não mais corriam o risco de apreensão e destruição em praça pública.

Percebemos que a partir daí uma maior integração dos cristãos possibilitou a comparação de manuscritos e a obtenção de um tipo de texto que não tivesse tantas variantes. E os textos locais foram pouco a pouco cedendo lugar a um único texto.

Possivelmente, o primeiro tipo de texto a circular em Constantinopla talvez não tenha sido o bizantino. Eusébio, em 331, foi encarregado por Constantino de preparar 50 cópias das Escrituras em pergaminho para as igrejas da nova capital. Eusébio usava o texto cesarense, portanto, é provável que tenha sido esse o tipo de texto primeiramente usado ali. É provável que essas cópias tenham sido submetidas a correções com base no texto luciânico, até serem finalmente substituídas por novas cópias essencialmente bizantinas, produzidas em algum escritório ou mosteiro local. Este tornou-se um procedimento comum.

A Vulgata Latina, de Jerônimo, acabou predominando na Europa Ocidental. Não significa, porém, que o texto de Luciano fosse desconhecido. Muitos manuscritos greco-latinos trazem o texto bizantino, ainda que combinado com variantes da Antiga Latina. Até a Vulgata acabou incorporando algumas formas bizantinas. No século XVI, com a invenção da Imprensa, os editores preocuparam-se com a publicação do Novo Testamento grego.


Fontes e bibliografia:
Profº Nataniel dos Santos Gomes (UNESA);
McDOWELL, Josh. Evidência que exige um veredicto, Volume 2. São Paulo: Candeia, 1992;
The New Testament. New International Version: Holman Bible Publishers, Nashville, 1988;
Novum testamentum graece et latine, Aparatu critico instuctum edidit Augustinus Merk. Editio octava. Roma: Sumptibus Pontificii Instituti Biblici, 1957
PAROSCHI, Wilson. Crítica textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993;
Santa Biblia. Antigua versión de Casiodoro de Reina (1569), revisada por Cipriano de Valera (1602), otras revisiones: 1862, 1909 y 1960. Revisión de 1960. Sociedades bíblicas unidas: (Madrid), 1996.