quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Começando do começo: O Sumo Deus

"Stonehenge" - monumento pré-histórico estruturalmente conservado até nossos dias

No começo, os seres humanos acreditavam num Deus que era a Causa primeira de todas as coisas e o Senhor do Céu e da Terra. Ele não era representado por imagens e não tinha templos nem sacerdotes a seu serviço. Era excelso demais para ser cultuado por humanos, inadequadamente. Aos poucos, foi se esmaecendo na consciência do seu povo. Por fim, tornou-se tão remoto que eles decidiram que não mais o queriam. Acabaram por dizer que ele desaparecera.

Esta é a teoria popularizada por Wilhelm Schmidt no livro "A Origem da Idéia de Deus", publicado pela primeira vez em 1912. Schmidt sugere que houve um monoteísmo primitivo antes de os homens começarem a adorar vários deuses. Originalmente, reconheciam apenas uma expressão da Divindade, Suprema, que criara o mundo e governava de longe os assuntos humanos. O fato é que a crença nesse sumo Deus (às vezes chamado de Deus do Céu, já que está relacionado ao céu), ainda é uma característica da vida religiosa de diversas tribos africanas. Eles anseiam por Deus nas preces. Acreditam que ele os observa e punirá as más ações. Contudo, estranhamente, está ausente de suas vidas diárias: não tem culto especial e jamais é representado em alguma efígie. Os membros das tribos dizem que ele não pode ser expresso e não pode ser contaminado pelo mundo dos homens. Alguns dizem que ele “foi embora”. os antropólogos sugerem que esse Deus tornou-se tão distante e excelso que na verdade foi substituído pelos espíritos menores e deuses mais acessíveis. Também assim, diz a teoria de Schmidt, nos tempos antigos, o Sumo Deus foi substituído pelos deuses mais atraentes dos panteões pagãos. No começo, portanto, havia um Deus. Se assim é, então o monoteísmo foi uma das primeiras idéias desenvolvidas pelos seres humanos para explicar o mistério e a tragédia da vida. Também indica que algumas características necessariamente precisariam ser atribuídas a essa Divindade Absoluta:

# É “Santo” – isto é, totalmente excelso, não pode ser contaminado pelo mundo dos homens (“santidade” significa ‘separado’, ‘outra realidade’, estar além do mundo físico).

# É Inacessível, Inexprimível e Inexplicável.

# É o Criador do Céu e da Terra.

# Governa a criação e os destinos humanos.

De qualquer modo, é impossível provar isso num ou noutro sentido. Tem havido muitas teorias sobre a origem da religião. Entretanto, tudo indica que crer em Deus é uma coisa que os seres humanos sempre fizeram. O que muda são as idéias religiosas. E quando uma idéia deixa de funcionar, os seres humanos a substituem. E as idéias esquecidas desaparecem discretamente, até sumir por completo do inconsciente coletivo. Em nossa própria época, muitas pessoas diriam que o Deus adorado durante milênios por judeus, cristãos e muçulmanos tornou-se tão remoto quanto o Sumo Deus da antiguidade. O ateísmo vem crescendo ao redor do mundo, e sem dúvida o sentimento religioso parece estar desaparecendo nas mentes de um número crescente de pessoas, sobretudo na Europa Ocidental. Muita gente relata um vazio deixado pela idéia de Deus em suas consciências, onde antes ela estava, porque, por mais irrelevante que possa parecer em certas áreas, esta idéia desempenhou papel crucial em nossa história, sempre foi um dos maiores conceitos humanos de todos os tempos. Para entender o que estamos perdendo – se é que estamos perdendo – precisamos ver o que as pessoas faziam antes de adorar esse Deus, o que ele significava e como foi concebido. Para fazer isso, precisamos remontar ao mundo antigo do Oriente Médio, onde a noção que temos de Deus hoje foi surgindo aos poucos, por volta de 14 mil anos atrás.

Pintura rupestre pré-histórica provavelmente representando "poderes mágicos"

Um dos motivos pelos quais a religião hoje parece irrelevante para tanta gente é que muitos de nós não têm mais o senso de que estão cercados pelo invisível. Nossa cultura científica nos educa para concentrar a nossa atenção no mundo material à nossa frente. E essa maneira de olhar o mundo alcançou grandes resultados. Uma de suas conseqüências, porém, foi que nós estamos perdendo o sendo do “espiritual” e do “santo”, que impregna, em todos os níveis, as vidas das pessoas das sociedades mais tradicionais, e que foi outrora um componente essencial de nossa experiência do mundo e da vida. Nas ilhas dos Mares do Sul, chama-se essa Força misteriosa de “Mana”. outros a percebem como uma Presença ou Espírito. Às vezes foi sentida como uma forma de radioatividade ou eletricidade. Já se acreditou que vivia no chefe espiritual, no reino vegetal, em rochas ou animais. Os latinos se referiam a “Numina” (espíritos) em grutas sagradas. Os árabes consideravam que uma paisagem era povoada pelos “Jinn”. Naturalmente, as pessoas queriam entrar em contato com essa realidade para obter poderes e favores, mas também queriam apenas admira-la, demonstrar respeito e gratidão. Ao personalizar as forças ocultas na natureza e fazer delas deuses associados ao sol, ao vento, o mar ou as estrelas, mas com características humanas, estavam expressando sua afinidade com o Invisível e com o mundo a sua volta.

Rudolph Otto, historiador alemão da religião que publicou seu importante livro “A Idéia do Sagrado” em 1917, acreditava que esse senso do numinoso era fundamental para a religião. Precedia qualquer tipo de desejo de explicar a origem do mundo ou de encontrar bases para a conduta ética. O poder numinoso era sentido pelos seres humanos de modos diferentes – às vezes, inspirava excitação, às vezes, uma calma profunda. Às vezes, as pessoas sentiam temor, respeito e humildade em presença da Força misteriosa inerente a todo aspecto da vida. Quando os seres humanos começaram a criar seus mitos e a adorar seus deuses, não estavam buscando explicação literal para fenômenos naturais. As histórias, esculturas e pinturas rupestres simbólicas eram uma tentativa de expressar sua perplexidade e relacionar suas próprias vidas com esse Mistério profundo. Na verdade, poetas, pintores e músicos são muitas vezes impelidos por um desejo semelhante, hoje. No período paleolítico, por exemplo, quando a agricultura estava se desenvolvendo, o culto da Deusa Mãe expressava a percepção de que a fertilidade que transformava a vida humana era de fato sagrada.

Representação neolítica da "deusa mãe"

Os artistas esculpiram aquelas estatuetas mostrando uma mulher nua e grávida, que os arqueólogos encontram por toda a Europa, Oriente Médio e Índia. A Grande Mãe continuou sendo imaginativamente importante por muitos séculos. Como o antigo Sumo Deus, foi absorvida em panteões posteriores e assumiu seu lugar entre as divindades ancestrais. Era em geral um dos deuses mais poderosos, com certeza lhe era atribuída mais importância que ao Sumo Deus, que continuava sendo uma figura meio vaga. Chamavam-na Inana na antiga Suméria, Ishtar na Babilônia, Anat em Canaã, Ísis no Egito e Afrodite na Grécia, e histórias notavelmente semelhantes foram imaginadas em todas essas culturas para expressar o papel dela na vida espiritual das pessoas. Esses mitos provavelmente não se destinavam a ser tomados literalmente, mas eram tentativas metafóricas de descrever uma realidade demasiado complexa e fugidia para ser expressa de outra maneira. Essas histórias dramáticas e evocativas de deuses e deusas ajudaram as pessoas a articular sua percepção das forças, poderosas mas invisíveis, que as cercavam.


Bibliografia:
SCHMIDT, Wilhelm. “The Origin of the Idea of God". New York: Ernest Brandewie - Worldcat Librarie, 1912;
ARMSTRONG, Karen. A History of God - The 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.