sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Os Profetas #4

Abaixo a idolatria!

O o maior problema da idolatria obviamente está no fato de as pessoas confundirem uma imagem, seja pintura ou escultura, construída com amoroso cuidado, com a Realidade inefável a que ela se refere. Mais tarde, na história da idéia de Deus, cristãos e muçulmanos trabalharam essa noção primitiva da Realidade Absoluta e chegaram a uma concepção mais próxima das visões hindu e budista. Alguns, porém, nunca conseguiram dar esse passo completamente, achando que sua concepção de Deus seria idêntica ao Mistério Último.

Os perigos de uma religiosidade idólatra tornaram-se claros por volta de 622 aC, no reinado do rei Josias de Judá. Ele estava ansioso para reverter as políticas sincretistas dos seus antecessores, os reis Manassés (687-42 aC) e Amon (642-40 aC), que haviam estimulado o povo a adorar os deuses de Canaã juntamente com Javé. Na verdade, Manassés pôs uma estátua de Asherah no Templo, onde havia um florescente culto da fertilidade. Muitos israelitas eram devotos de Asherah, e alguns achavam que ela era “esposa” de Javé. Mas Josias estava determinado a promover o culto puro a Javé, e assim decidiu fazer extensos reparos no Templo.

Nessa mesma época, o sumo-sacerdote Ilquias descobriu um antigo manuscrito: uma versão do último sermão de Moisés aos filhos de Israel. Ele o deu ao secretário de Josias, Shapan, que o leu em voz alta na presença do rei. Ao ouvi-lo, o velho rei rasgou as vestes, horrorizado: não admirava que Javé estivesse tão furioso com seus ancestrais! Eles haviam deixado de obedecer, completamente, às instruções dadas a Moisés:

Em seu último sermão, Moisés é ordenado a dar uma nova centralidade à Aliança. Javé marcara seu povo, distinguindo-o de todas as outras nações, não devido a algum mérito, mas por seu grande Amor. Em troca, exigia completa lealdade e uma feroz rejeição a todos os outros deuses. É quase certo que o “Livro da Lei” descoberto por Ilquias era o núcleo do texto que hoje conhecemos como Deuteronômio. O núcleo do Deuteronômio inclui a declaração que mais tarde se tornaria a profissão de fé judaica:

“Ouve (shemá) Israel! Javé nosso Elohim é o único (ehad) Elohim! Amarás pois Javé com todo teu coração, com toda a tua alma, e com todo o teu poder. E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração.” - Deuteronômio, 6:4-6

Quando recitam hoje o “Shemá”, os judeus dão-lhe uma interpretação monoteísta: nosso D'us é único. Mas o deuteronomista não atingira ainda essa perspectiva. “Javé ehad” não queria dizer, necessariamente, que só havia um Deus, mas que a um só era permitido adorar. Os outros deuses continuavam sendo um ameaça: seus cultos eram sedutores e podiam afastar de Javé os israelitas, que era um Deus “ciumento”. Se obedecessem as Leis de Javé, ele os abençoaria e lhes traria prosperidade, mas se o desertassem, as conseqüências seriam devastadoras.

“E desarraigados sereis da terra à qual tu passas a possuir. E Javé vos espalhará entre todos os povos, desde uma extremidade da Terra até a outra extremidade(...) E tua vida estará como em suspenso diante de ti (...) Pela manhã dirás: Ah, quem me dera ver a noite! E à tarde dirás: Ah, quem me dera ver a manhã! Pelo pasmo de teu coração e pelo que verás com os teus olhos.” - Deuteronômio, 28:64-68

Quando ouviram essas palavras no fim do século VII aC, o rei Josias e seus últimos súditos estavam para enfrentar uma nova ameaça política. Tinham conseguido manter os assírios a distância e assim evitar o destino das dez tribos do Norte, que haviam sofrido os castigos descritos por Moisés. Mas, em 600 aC, o rei Nabucodonosor, da Babilônia, esmagaria os assírios e começaria a erguer seu próprio império.

Nessa atmosfera de extrema insegurança. As políticas do deuteronomista parecem ter causado grande impacto. Longe de obedecer às ordens divinas, os dois últimos reis de Israel haviam deliberadamente cortejado a tragédia. Josias iniciou de imediato uma reforma, agindo com zelo exemplar. Todas as imagens, ídolos e símbolos de fertilidade foram retirados do Templo e queimados. Josias também derrubou a grande efígie de Asherah e destruiu os aposentos de prostitutas sagradas do Templo, que ali teciam suas vestes para ela. Todos os antigos santuários no país, que haviam sido enclaves do paganismo, foram destruídos. Daí em diante, os sacerdotes só tinham permissão de fazer sacrifícios a Javé no purificado Templo de Jerusalém. O cronista, que registrou as reformas de Josias quase trezentos anos depois, dá uma eloqüente descrição desse zelo:

“E derrubaram perante ele (Josias) os altares de Baalim; e cortou as imagens do Sol, que estavam acima deles; e os bosques e as imagens de escultura e de fundição quebrou e reduziu a pó, e os espargiu sobre as sepulturas dos que lhes tinham sido sacrificados. E os ossos dos sacerdotes queimou sobre seus altares; e purificou a Judá e a Jerusalém. O mesmo fez nas cidades de Manassés e de Efraim e de Simeão, e ainda até Naftali; em seus altares ao redor, assolados. E tendo derrubado os altares e os bosques e as imagens de escultura, até reduzi-los a pó, e tendo cortado todas as imagens do sol em toda a terra de Israel, então voltou para Jerusalém.” - II Crônicas, 34:5-7

Jeremias lamentando a destruição de Jerusalém

Os reformadores reescreveram a história de Israel. Os livros históricos de Josias, Samuel e Reis foram revisados segundo a nova ideologia, e depois os editores do Pentateuco acrescentaram trechos que davam uma interpretação deuteronomista do mito do Êxodo às demais narrativas, mais antigas.

Devemos observar que nem todos os israelitas endossavam o deuteronomismo nos anos que levaram à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, em 587 aC, e à deportação dos judeus para a Babilônia. Em 604 aC, ano da ascensão de Nabucodonosor, o profeta Jeremias reviveu a perspectiva iconoclasta de Isaías, que virou a doutrina triunfalista e a crença de que os judeus eram o "povo eleito" de cabeça pra baixo: segundo ele, Deus usava a Babilônia como seu instrumento para punir Israel, e agora era a vez de Israel ser “posto em espanto”. Iriam para o exílio por setenta anos. Quando o rei Joaquim ouviu esse oráculo, arrancou o rolo da mão do escriba, rasgou-o em pedaços e o jogou no fogo. Temendo por sua vida, Jeremias foi obrigado a esconder-se.

A carreira de Jeremias mostra os imensos sofrimentos e esforço, implicados nessa concepção mais desafiadora de Deus. Ele detesta ser profeta, e estava profundamente angustiado por ter de condenar o povo que amava. Não era um agitador por natureza, mas um homem de coração manso. Quando lhe veio o Chamado, clamou em protesto: “Ah, Senhor, vede: eu não sei falar; sou uma criança!”. E o Senhor “estendeu a mão” e tocou os lábios dele, colocando-lhe na boca Suas Palavras. A mensagem que ele tinha de articular era ambígua e contraditória: Para arrancares, e para derrubares, e para destruíres, e para arruinares. E também para edificares e para plantares” (Jeremias, 1:6-10). Estes extremos, inconciliáveis entre si, provocavam agonia e tensão em Jeremias. Ele sentia Deus como uma dor que lhe convulsionava os membros, partia o coração e o fazia cambalear como um bêbado. A experiência profética do mysterium terrible et fascinans (‘Mistério Terrível e Fascinante’) era ao mesmo tempo violência e sedução:

“Seduziste-me, oh Senhor, e seduzido fiquei;
mais forte foste que eu, e prevaleceste (...)
Então disse eu: Não me lembrarei dele,
E não falarei mais no seu Nome;
Mas foi no meu coração como fogo ardente,
Encerrado nos meus ossos;
E fiquei fatigado de sofrer,
E não pude”
- Jeremias, 20:7-9

Jeremias sentia-se puxado por Deus para duas direções diferentes, ao mesmo tempo: por um lado, ele sentia uma profunda atração para Javé, o que tinha toda a doce entrega de uma sedução, mas em outros momentos sentia-se devastado por uma força que o carregava contra a sua vontade.

Desde Amós, o profeta era um homem entregue a si mesmo. Ao contrário de outras áreas do mundo civilizado na época, o Oriente Médio não adotou uma ideologia religiosa de ampla união. O Deus dos profetas obrigava os israelitas a desligar-se da consciência repleta de mitos do Oriente Médio e seguir numa direção bastante diferente da tendência geral. Na agonia de Jeremias, podemos ver que imensa sensação de deslocamento estava envolvida nisso.

Até o deuteronomista, cuja imagem de Deus era menos ameaçadora, via um encontro com Javé como arrasador e abrasivo: na sua descrição, Moisés explica aos israelitas, apavorados pela perspectiva de contato direto com Javé, que Deus lhes enviará um profeta em cada geração, para suportar a força do impacto divino.


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.


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