quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Os Profetas

Renascimento consciencial

Entre 800 e 200 aC, desde a Europa meridional até o Vale do Indo e à China, surgiram as maiores escolas filosófico-religiosas e os mais importantes textos sagrados do nosso mundo: os Upanishades, as Sutras budistas, as Tábuas da Lei e o Antigo Testamento, os Analectos de Confúcio, os textos de Dao De Jing e a obra de Platão. E também foi a era dos chamados Grandes Profetas, que trouxeram para o mundo antigo, e para a História como um todo, os fundamentos da idéia definitiva de Deus. Karl Jaspers, filósofo alemão, denominou esse momento de renascimento da humanidade como a "Era Axial", termo que foi amplamente aceito e adotado pelos eruditos.

Meditação de Isaías - Gustave Doré

Em 742 aC um membro da família real de Judá teve uma visão no Templo que Salomão construíra em Jerusalém. Era uma época de ansiedade para o povo de Israel. O rei Uzias de Judá morrera naquele ano, e fora sucedido por seu filho Acaz, que desejava estimular seu povo a adorar deuses pagãos juntamente com o Deus UNO, Javé. O reino de Israel, ao norte, achava-se em estado de quase anarquia; após a morte do rei Jeroboão II, cinco reis haviam-se sentado no trono entre 746 e 736 aC, enquanto o rei Tigleth Pilesar III, da Assíria, lançava olhares cobiçosos sobre as terras deles, ansioso por acrescentá-las ao seu território em expansão. Em 722, seu sucessor, o rei Sargão II, ia conquistar o reino do norte e deportar a população. As dez tribos setentrionais de Israel foram obrigadas a assimilar-se e desaparecer da História, enquanto o pequeno Reino de Judá receava pela própria sobrevivência.

Quando orava no Templo, pouco depois da morte de Uzias, Isaías provavelmente sentia muitas apreensões; ao mesmo tempo, talvez tivesse uma desconfortável consciência da impropriedade do pródigo cerimonial do Templo. Isaías pode ter sido um membro da classe governante, mas tinha opiniões democráticas, e era sensível à situação dos pobres, que vinham sendo, cada vez mais, marginalizados e oprimidos pelas classes mais abastadas da sua sociedade. As injustiças sociais imperavam no estado israelita, enquanto a riqueza se concentrava nas mãos de uma pequena elite e a maioria pobre sofria humilhações e privações de suas necessidades básicas. Com o incenso enchendo o santuário diante do Santo dos Santos (o aposento destinado a conter a Arca da Aliança com as Tábuas da Lei de Deus) e o lugar recendendo a sangue de animais sacrificados, ele talvez temesse que a religião de Israel houvesse perdido sua integridade e sentido interior.

Foi quando lhe pareceu ter visto o próprio Javé sentado em seu trono no Céu, acima do Templo, a réplica terrena da corte celestial. O séquito de Javé preencheu o santuário, e Ele era assistido por dois serafins, que cobriam seus rostos com as asas para não verem o dEle. Gritavam um para o outro, antífonamente: "Santo! Santo! Santo é Javé Sabaoth! Sua Glória inunda toda a Terra!". Ao som de suas vozes, todo o Templo estremecia nos alicerces e enchia-se de fumo, envolvendo Javé numa nuvem impenetrável, semelhante à nuvem e fumo que o haviam ocultado de Moisés no monte Sinai...

Quando usamos a palavra "santo", hoje, em geral nos referimos a um estado de excelência moral. O hebraico “kaddosh”, porém, nada tem a ver com moralidade enquanto tal, mas significa a condição de “outro”, separado do mundo das coisas ordinárias – uma separação total e absoluta. A aparição de Javé no monte Sinai enfatizava a imensa separação que existe entre o homem e o Mundo Divino. Agora os serafins gritavam: “Outro! Outro! Javé é outro!”. Isaías experimentou essa sensação do numinoso, que periodicamente baixava sobre homens e mulheres e os enchia de fascinação e terror. No clássico “A Idéia do Sagrado”, Rudolph Otto descreveu essa terrível experiência da realidade transcendente como o ”Mysterium terrible et fascinans” (‘Mistério terrível e fascinante’) - terrível porque se dá com um profundo choque que de repente nos isola da condição da normalidade em que vivemos e à qual que estamos acostumados, e fascinante porque, paradoxalmente, exerce uma atração irresistível. Nada, nada mesmo há de racional nessa experiência arrasadora, que Otto compara à da música: as emoções que engendra não podem ser adequadamente expressas em palavras ou conceitos.

Na verdade, não há como se “afirmar” que exista o senso do inteiramente Outro, porque não se dá em nosso quadro normal de realidade. A nova idéia de Deus da Era Axial era ainda a do “Senhor dos Exércitos” (sabaoth), mas não mais a do deus da guerra. Tampouco se parecia com uma divindade tribal, passionalmente em favor de um povo: sua Glória não mais se limitava à Terra Prometida, mas enchia toda a Terra. Isaías não era como Buda experimentando uma iluminação que trazia tranqüilidade e felicidade. Não se tornara o perfeito mestre de homens. Ao contrário, ele estava tomado de terror, gritando alto:

"Ai de mim! Estou morrendo, porquanto sou de lábios impuros e habito no meio de um povo impuro de lábios. Porque os meus olhos viram o Rei, Javé Sabaoth”

Dominado pela santidade transcendente de Javé, ele só conseguia ter consciência da sua incompetência e impureza ritual. Ao contrário do Buda ou de um yogue, ele não se preparara para aquela experiência com uma série de exercícios espirituais. Tudo caíra sobre ele de repente, e estava completamente abalado pelo impacto devastador. Mas nesse momento, um dos serafins voou para ele com uma brasa viva e purificou os seus lábios, para que pudessem dizer a Palavra de Deus. Muitos dos profetas não queriam ou não podiam falar em nome de Deus. Quando, no episódio da sarça ardente, Deus chamou Moisés, o protótipo de todos os profetas, e ordenou-lhe que fosse seu mensageiro diante do faraó e dos filhos de Israel, Moisés protestara que “não sabia falar bem”. Esse motivo constante nas histórias das vocações proféticas simboliza a dificuldade do homem falar a Palavra de Deus. Os profetas não estavam ávidos por proclamar a mensagem divina, ao contrário. Jonas, por exemplo, tentou fugir, até ser engolido por um peixe. Eles relutavam em empreender uma missão de muita tensão e angústia. A transformação do Deus de Israel num símbolo de poder transcendente não ia ser um processo calmo, sereno, mas acompanhado de dor e luta.

Deveríamos sempre ter o cuidado de não interpretar de modo muito literal a história da visão de Isaías, o que infelizmente acaba acontecendo muitas vezes. Ela parece mais uma tentativa de descrever o indescritível, e Isaías tenta dar a sua platéia uma idéia aproximada do que lhe aconteceu. Os salmos muitas vezes descrevem Javé entronizado em seu Templo como Rei, exatamente como Baal, Marduk e o filisteu Dagon (os deuses dos povos vizinhos) presidiam como se fossem monarcas em seus templos. Por trás da imaginação mitológica, porém, começava a surgir em Israel uma concepção bastante distinta da Realidade Última: a experiência com o seu Deus é um encontro com uma Pessoa. Apesar de sua terrível condição de Outro, Javé fala a Isaías, e este pode responder.

Javé pergunta: “A quem enviarei, e quem há de ir por nós?” e, como Moisés antes dele, Isaías responde de imediato: “Eis-me aqui!” (‘hineni!’) “Envia-me a mim!”. O objetivo dessa visão não era iluminar o profeta, mas dar-lhe uma tarefa prática. Basicamente, o profeta é alguém que está em presença de Deus, mas essa experiência de transcendência resulta não em transmissão de conhecimento – como no budismo – e sim em ação concreta. Enquanto os monges budistas e os yogues se caracterizam por uma vida de profunda e constante introspecção e discursos teóricos, os profetas são todos homens de ação, ativistas incomparáveis que dedicaram integralmente suas vidas ao cumprimento de um propósito concreto. Seus princípios se refletem tanto ou mais em seus atos que em suas palavras. O profeta não se caracteriza tanto pela iluminação mística - embora ela se insinue ao longo do texto bíblico - a ênfase da história está no desapego, na anulação do ego e na entrega à Vontade de Deus. Aí se fundamenta um princípio essencial da Cabalá: “O homem foge da Vontade de Deus para buscar a felicidade, por não saber que a verdadeira e plena felicidade do homem está em cumprir a Vontade de Deus. Esta é a razão pela qual o homem foi criado. A Vontade do Eterno é a perfeita realização do homem. Estas duas coisas não são duas, mas são uma só e a mesma coisa. Esta é uma verdade fugidia, mas aquele que meditar nela dia e noite, e conseguir compreender o seu significado, alcançará a libertação dos desejos”.

Com o típico paradoxo semita, Javé avisou a Isaías que o povo não ia aceitá-la. Ele não devia ficar consternado quando eles rejeitassem as palavras de Deus: ”Vai e diz a esse povo: ‘Ouvi, de fato, e não entendeis, e vede, em verdade, mas não percebeis’”. Setecentos anos depois, Jesus iria dizer essas mesmas palavras quando as pessoas se recusassem a ouvir sua mensagem igualmente dura. A humanidade não suporta muita realidade. Os israelitas da época de Isaías estavam à beira da guerra e da extinção, e Javé não tinha uma mensagem alegre para eles: suas cidades seriam devastadas, o campo arrasado e as casas esvaziadas de seus habitantes. Isaías viveria para ver o cumprimento das profecias na destruição do Reino do Norte em 722 aC e a deportação das dez tribos. Em 701, Senaquerib invadiria Judá com um vasto exército assírio, sitiaria 46 de suas cidades e fortalezas, empalaria em varas os oficiais defensores, deportaria cerca de 2 mil pessoas e aprisionaria o rei judeu em Jerusalém “como um pássaro numa gaiola”. Isaías teve a difícil tarefa de advertir seu povo dessas catástrofes iminentes:

“Haverá um grande vazio no campo, e, embora reste um décimo do povo, ele será desfolhado como um terebinto, do qual, uma vez derrubado, só resta a cepa.”

Estas profecias se cumpriram. E a arrepiante originalidade na mensagem de Isaías estava em Deus usar a Assíria como seu instrumento. Não seriam Sargão e Senaquerib que mandariam os israelitas para o exílio e devastariam o país. É a Vontade de Deus se cumprindo. Esse era um tema constante dos profetas da Era Axial. Antes, o Deus de Israel tinha-se distinguido das divindades pagãs por revelar-se em acontecimentos concretos, trazendo a vitória ao povo de Israel, e não apenas na mitologia e liturgia. Agora, insistiam os novos profetas, a catástrofe política, além da vitória, revelava o Deus que se tornava Senhor da História. Comandava não só Israel como todas as nações. Por sua vez, a Assíria viria a sofrer por seus reis não terem compreendido que eram instrumentos na mão dAquele que é maior do que eles.

Mas existia também o aviso profético sobre a destruição final da Assíria, e com este uma esperança para o futuro (outra profecia que viria a se cumpir). Entretanto, nenhum israelita teria querido saber que seu povo trouxera a destruição sobre a própria cabeça com sua política que se tornara míope e sua conduta de vida cruel, injusta, corrupta e exploradora. Em vez de oferecer ao povo uma panacéia, profetas como Isaías tentavam fazer com que seus compatriotas encarassem de frente os fatos reais da História e os aceitassem como um diálogo com Deus.


Fontes e bibliografia:
Profº Marcos Santarrita
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong;
"The idea of the holy...", 1923 - Rudolf Otto (Oxford);
"Wanderings, history of the jews", 1978 (Nova York).


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