sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Os Profetas #3

Amor, e não sacrifício!

As antigas religiões cananéias ainda floresciam em Israel. No século X aC, o rei Jeroboão I estabelecera o culto de dois touros nos santuários de Dan E Beth-El. Duzentos anos depois, os israelitas ainda participavam de ritos de fertilidade e sexo ritual ali, como vemos nos oráculos do profeta Oséias, contemporâneo de Amós. Alguns israelitas pareciam pensar que Javé tinha uma esposa: arqueólogos desenterraram recentemente inscrições dedicadas "A Javé e sua Asherah". Oséia irritava-se particularmente com o fato de Israel estar violando os temos da Aliança ao adorar "outros deuses". Como todos os novos profetas, ele se preocupava com o sentido interior e real da Religião. Ele esreve a Palavra de Deus:

“Eu quero o Amor (hesed) e não o sacrifício; e o Conhecimento de DEUS (daath Elohim), e não holocaustos”.

Não se referia a um conhecimento teológico, como entendemos hoje: a palavra “daath” vem do verbo hebraico “yada”: conhecer, que tem conotações íntimas e pessoais. Na velha religião cananéia, Baal "casara-se" com a terra, e o povo comemorava esse feito com orgias rituais. Oséias lembrava ao povo que, desde a Aliança, Javé substituíra Baal e “desposara” o povo de Israel. Eles tinham de compreender que era Javé, e não Baal, o portador da verdadeira Vida, em todos os sentidos:

“E será naquele dia, diz Javé,
que ela me chamará: ‘Meu marido’;
e não me chamará mais: ‘Meu Baal’.
E da sua boca tirarei os nome de Baalim,
e os seus nomes não virão mais em memória.”


Especialmente interessante é notar que essa passagem vai além de expor o erro do povo em clamar por algum "outro deus": ela dá a entender que esse povo estava, mesmo sem saber, clamando pelo Único Deus, equivocadamente, na figura inadequada de "Baal": "...não me chamarás mais: 'Meu Baal...'" - ou seja, é como dizer "não me chamarás por um nome impróprio. Não deverás continuar a me ver e compreender sob essa forma inadequada. Eu não estou realmente aí - eu sou outro, estou em outro lugar".

Enquanto Amós atacava as injustiças sociais, Oséias cuidava da falta de sentido real e interior na religião israelita: o “conhecimento” de Deus a que se refere se relacionava a “hesed” dando a entender uma apropriação e um vínculo interiores que seriam o real sentido da religião e que eram mais importantes do que as observâncias exteriores.

Oséias nos dá uma espantosa visão do modo pelo qual os profetas estavam desenvolvendo sua concepção de Deus. Veremos que eles muitas vezes eram inspirados a tornar suas próprias vidas como complicadas “mímicas” para demonstrar a difícil situação de seu povo. No caso de Oséias, isso se dá de maneira chocante. - Ele é orientado a se casar com uma “prostituta” (‘esheth zeunnim’), porque o país se tornara “nada mais que uma prostituta abandonando seu Deus”. Mas “esheth zeunnim” quer dizer, literalmente, “uma esposa de prostituição”, talvez uma mulher de temperamento promíscuo ou uma prostituta “sagrada” a algum culto de fertilidade. Talvez mesmo uma atendente do culto de Baal.

Queda dos profetas de Baal - Gustave Doré

Oséias conhece Gomer, se apaixona e a desposa. O seu casamento seria um símbolo do relacionamento entre Deus e a infiel nação Israel. De fato, depois do casamento, Gomer se torna adúltera e se prostitui, até deixar sua casa e ser comprada por um amante.

A infidelidade de sua esposa foi para o profeta Oséias uma experiência dilacerante. Ele pôde intuir como Javé deveria “sentir-se” quando seu povo e desertava e se prostituía em busca de deuses como Baal. No princípio, Oséias foi tentado a denunciá-la e nada mais ter com ela. Na verdade a Lei estipulava que o homem devia divorciar-se de uma esposa infiel. Mas Oséias amava Gomer, e acabou indo atrás dela e comprando-a de volta de um novo amo. Viu seu desejo de reconquistar a amada, mesmo que ela não o merecesse, como um sinal de que Javé estava disposto a dar uma outra oportunidade a Israel.

Os profetas atribuíam seus próprios sentimentos e experiências humanos a Deus: Isaías, membro da família real, via Javé como um Rei. Amós atribuía sua empatia com os pobres sofredores a Deus. Oséias via o Senhor como um marido traído que continuava sentindo Amor e compaixão por sua esposa. Toda religião deve começar com um certo antropomorfismo (isto é, atribuir características humanas à Divindade). A idéia de um Deus completamente distante, como o Motor Imóvel de Aristóteles, não poderia inspirar uma busca espiritual. Enquanto não se torna um fim em si, essa projeção pode ser útil e até benéfica. Deve-se dizer que esse “retrato imaginativo” de Deus em termos humanos inspirou uma preocupação que não está presente no hinduísmo, por exemplo, nem em outras religiões transcendentes antigas. Os judeus seriam o primeiro povo do mundo antigo a estabelecer um sistema assistencial aos pobres e desfavorecidos, que causava admiração nos seus vizinhos pagãos.

Mas a vitória de Javé (ou da idéia de Deus dos judeus) foi arduamente conquistada. Envolveu tensão, violência e confronto, e sugere que a nova religião do Deus único não se consolidou com facilidade entre os israelitas. Esta idéia de Deus não parecia capaz de transcender as velhas divindades de maneira natural, pacífica. Elas tiveram que ser expulsas do imaginário popular à força. Assim, no Salmo 82, nós vemos Javé fazer uma jogada pela liderança da Assembléia Divina, que desempenhara papel importantíssimo nos antigos mitos babilônico e cananeu:

“Javé está no conselho de El;
julga no meio dos Deuses:

‘Até quando julgareis injustamente,
e aceitareis as pessoas dos ímpios (selah)!
Fazei justiça ao pobre e ao órfão,
Justificai o aflito e o necessitado,
Tirai-o das mãos dos ímpios!
Eles não conhecem nem entendem, andam em trevas,
todos os fundamentos da Terra vacilam.
Eu disse: Vós sois Deuses,
E todos vós filhos de El Elyon.
Todavia morrereis como homens,
E caireis como quaisquer dos príncipes.”

A idéia do Deus de Israel se levantava para confrontar o conselho sobre o qual presidia El desde tempos imemoriais. Os “outros deuses” eram acusados de não corresponderem ao desafio social da sua época. Nos velhos tempos, a consciência dos israelitas estivera disposta a aceitar aos demais deuses como diferentes concepções da manifestação divina, como "filhos de El Elyon” (‘Deus Altíssimo’) mas agora essas concepções obsoletas estavam condenadas a murchar como homens mortais. Não apenas o salmista descreve Javé condenando seus “companheiros” divinos à morte, mas, ao fazê-lo, assume a prerrogativa tradicional de El, que, aparentemente, ainda tinha defensores em Israel.

A compreensão dos antigos judeus caminhava, lenta e inexoravelmente, para uma noção mais abrangente, evoluída, transcendental e elevada do DEUS UNO.


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong;
EstudosdaBiblia.Net (Karl Hennecke / Dennis Allan, USA).


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