A raiva que Jeremias sentia tomar conta de seu coração, ele atribui a Javé. Quando os profetas pensavam no homem, logo pensavam também em Deus, cuja presença, acreditavam, dependia de certa forma do homem para se manifestar no mundo.
Enquanto o inimigo estava às portas, Jeremias esbravejou com seu povo em nome de Deus, embora, diante de Deus, implorasse por eles. Assim que Jerusalém foi conquistada pelos babilônios em 587 aC, os oráculos de Javé se tornaram mais consoladores: prometia salvar seu povo, agora que tinham aprendido a lição, e trazê-lo de volta pra casa. As autoridades babilônias permitiam a Jeremias ficar em Judá, e para manifestar sua confiança no futuro ele comprou algumas propriedades: “Porque assim diz Javé Sabaoth (o ‘Senhor dos Exércitos’): ‘Ainda se comprarão casas, e campos, e vinhas nesta terra’” (Jeremias, 32:15).
Mas algumas pessoas em Israel culpavam Deus pela catástrofe. Durante uma visita ao Egito, Jeremias encontrou um grupo de judeus que fugira para a área do Delta e não queria saber de Javé. As mulheres deles alegavam que tudo estava ótimo enquanto haviam realizado os ritos tradicionais em honra de Ishtar, Rainha do Céu, mas assim que os tinham interrompido, estimulados por tipos como Jeremias, vieram a tragédia, a derrota e a miséria. Mas essa situação pareceu aprofundar a intuição de Jeremias. Após a queda de Jerusalém e a destruição do Templo, ele passou a compreender que tais aspectos externos da religião não passavam de símbolos de um estado interno, subjetivo. No futuro, a Aliança com Israel seria bastante diferente:
“Porei a minha Lei no seu interior, e a escreverei em seu coração” (Jeremias, 31:33).
Curioso perceber que essa divisão entre duas linhas distintas do pensamento religioso permanece até os nossos dias: entre cristãos, persistem as disputas entre um grupo crescente que acredita que se aproximar de Deus só vale a pena se Ele os abençoar com todas as graças e bênçãos materiais possíveis (ontem era a colheita e a saúde dos rebanhos – hoje é uma promoção no emprego ou o sucesso nos negócios) e um outro grande grupo que entende essa Busca mais como entrega espiritual e aprendizado do que uma procura por um retorno material imediato. A meu ver, o que mais faltou até hoje na história do cristianismo, foi a noção do "Caminho do Meio" dos orientais. - Enquanto praticamente todos os maiores santos católicos escolheram uma vida de puro sofrimento em prol dos pobres e desfavorecidos, optando por um Caminho da Cruz estreitíssimo que só seria possível de ser seguido por poucos, a maioria dos "novos cristãos" (pentecostais e neo-pentecostais) persegue bençãos materiais abundantes e sucesso profissional, numa espécie de “barganha com Deus”, deixando de lado o sentido profundo e sublime da religião: o Amor ao próximo. A importância do Caminho do Meio continua distante e incompreendida, embora já tivesse sido vislumbrada há séculos por um dos maiores santos e pensadores cristãos da História, Agostinho de Hipona, que compreendeu que a melhor regra de disciplina é conservar a justa medida, longe dos extremos.
Os judeus que foram para o exílio não tiveram de assimilar-se, como ocorrera com as dez tribos setentrionais em 722 aC. Viviam em duas comunidades: uma na própria Babilônia e a outra nas margens de um canal que partia do Eufrates chamado Chebar, numa área que chamaram de “Tel Aviv” (‘Monte da Primavera’). Entre a primeira leva de exilados deportados em 597 aC havia um sacerdote chamado Ezequiel. Durante cerca de cinco anos ele permaneceu sozinho em casa sem falar com ninguém. Depois teve uma dilacerante visão do Divino, que literalmente o derrubou. É importante descrever sua primeira visão com um mínimo de detalhes, porque – séculos depois – se tornaria muito importante para os misticismo universal:
Ezequiel viu uma nuvem de fogo, cruzada por raios. Um vento forte soprava do norte. No meio dessa tempestuosa escuridão, ele pareceu ver – ele tem o cuidado de enfatizar a natureza provisória das imagens – uma grande Carruagem puxada por quatro fortes bestas. Pareciam os karibu (seres híbridos meio fera meio homem) esculpidos nos portões do palácio em Babilônia, mas Ezequiel torna quase impossível visualizá-las: cada uma tinha quatro cabeças – com o rosto de um homem, um leão, um touro e uma águia. Cada uma das rodas rolava numa direção diferente das outras. A imagística parece simplesmente servir para enfatizar o estranho impacto das visões que ele tentava articular. O bater das asas das criaturas era ensurdecedor, “soava como água correndo, como a voz de Shaddai, uma voz como uma tempestade, como o barulho de um acampamento”. Na Carruagem havia algo que “parecia ser um trono”, e sentado com grande pompa viu um ”ser que parecia um homem”: brilhava como bronze, e de seus membros se irradiavam raios. Era também “algo que parecia a ‘Glória’ (‘Kavod’) de Javé”. Ezequiel prostrou-se imediatamente no chão e ouviu uma voz que lhe falava...
A voz chamou-o de “filho do homem”, como que para acentuar a distância que naquele momento havia entre a humanidade e o Reino Divino. Também aqui a visão de Javé seria seguida por um plano prático de ação, Ezequiel devia disseminar a Palavra de Deus entre os filhos rebeldes de Israel. O tom não humano da Mensagem Divina era transmitido por uma imagem fortíssima: uma mão estendida para o profeta, agarrando um rolo, coberto de lamentos e gemidos. Ezequiel recebeu a ordem de comer o rolo, para ingerir a Palavra e fazê-la parte de si. Como de hábito, o Misterium era Fascinans, além de Terrible: o rolo revelou ser doce como mel. Por fim, disse Ezequiel: “O Espírito me levantou, e me levou; e eu me fui mui triste, pelo ardor do meu espírito. Porém, a Mão de Javé era forte sobre mim” (Ezequiel, 3:14-15). Chegou a Tel Aviv e ali quedou-se ”como estonteado” por toda uma semana.
A estranha carreira de Ezequiel acentua como o Mundo Divino se tornara alheio e estranho para a humanidade. Ele próprio foi obrigado a tornar-se um sinal dessa estranheza. Com freqüência, lhe era ordenado que praticasse "mímicas" estranhas, que o separavam dos seres humanos normais. Essas mímicas ou interpretações parecem também se destinar a demonstrar os apuros de Israel durante essa crise, e, num nível mais profundo, mostravam que o próprio Israel estava se tornando um estranho num mundo pagão.
A visão pagã, por outro lado, celebrava a continuidade que se acreditavam existir entre os deuses e o mundo físico. Ezequiel não encontrou nada de consolador nessas velhas religiões, que ele chamava de impuras. Numa de suas visões, foi levado a uma torre dourada do Templo de Jerusalém. Para seu horror, viu que, mesmo encontrando-se à beira da destruição, o povo de Judá ainda adorava deuses pagãos no Templo de Javé. O próprio Templo se tornara um lugar como que de pesadelo: as palavras nas suas salas estavam pintadas com serpentes enroscadas e animais repulsivos; os sacerdotes realizavam ritos ”imundos” sob uma luz sórdida, como se dedicados ao sexo escuso. Em outra câmara, mulheres choravam pelo ‘deus sofredor’ Tammuz. Outros adoravam o sol, de costas para o santuário. “Viste, porventura, filho do homem, o que os anciãos da casa de Israel fazem nas trevas, cada um em sua câmara pintada?” (Ezequiel, 8:12). Por fim, o profeta viu a estranha Carruagem que lhe surgira na primeira visão voar para longe, levando consigo a Glória de Javé.
Contudo, Javé não era uma divindade totalmente distante. Nos derradeiros dias antes da destruição de Jerusalém, Ezequiel descreve-o fulminando o povo de Israel, numa tentativa de chamar sua atenção a reconhecê-lo. Israel só podia culpar-se a si mesmo pela catástrofe iminente. Javé encorajava israelitas como Ezequiel a ver que os golpes da História não eram aleatórios nem arbitrários, mas tinham lógica e justiça mais profundas, que os homens não podiam compreender.
Fontes e bibliografia:
Profº Dirceu Fernando Belotto;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.
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