Enquanto a idéia de Deus de Moisés era triunfal, a de Isaías estava repleta de mágoa. A profecia, como chegou até nós, começa com um lamento ofensivo ao povo da Aliança: "O boi e o asno conhecem seus donos, mas Israel não conhece nada...”. Javé se mostrava absolutamente revoltado com os sacrifícios de animais no Templo, enojado pela gordura dos bezerros, sangue dos touros e cabras e a fumaça que subia dos holocaustos. Não suportava as cerimônias de ano novo e as peregrinações deles. Isso teria chocado a platéia de Isaías: no Oriente Médio, essas celebrações cultuais faziam parte da essência da religião. Os deuses pagãos dependiam das cerimônias para renovar suas energias; o prestígio deles dependia em parte da magnificência de seus templos. Mas agora, Javé assumia de uma vez a sua condição de Deus UNO, revelando que, na verdade, essas coisas eram absolutamente sem sentido. Como outros sábios e filósofos no mundo civilizado (o Oikumene), Isaías sentia que a observância exterior não bastava. Os israelitas deveriam descobrir o significado interior de sua religião. Javé queria mais compaixão do que sacrifício:
“Até quando multiplicais a oração
não ouço,
porque vossas mãos estão cheias de sangue.
Lavai-vos, purificai-vos,
tirai a maldade de vossos atos de diante dos Meus Olhos:
cessai de fazer o mal;
Aprendei a fazer o bem;
procurai a justiça,
ajudai o opresso,
fazei justiça ao órfão,
tratai da causa das viúvas.”
Os profetas haviam descoberto o predominante dever da compaixão, que se tornaria a marca distintiva de todas as grandes religiões formadas na Era Axial. Todas as novas ideologias que, nesse período, se desenvolviam no mundo civilizado insistiam em que o "teste de autenticidade" da religião era que a experiência religiosa se integrasse a vida diária. Não bastava mais limitar a observância do Templo ao mundo extratemporal do mito. Após a iluminação, o homem ou mulher deve voltar ao cotidiano e praticar a misericórdia para com todos os seres vivos.
O ideal social dos profetas estava implícito no culto de Javé desde o Sinai: a história do Êxodo acentuava que Deus estava do lado dos fracos e oprimidos. A diferença era que agora os próprios israelitas eram castigados como opressores. O que mais impressiona na história de Isaías, é que na época da sua visão profética, dois profetas já pregavam a mesma mensagem(!) no caótico Reino do Norte! Como explicar? Se você pretende estudar religião, desista da arte de "entender" e aplique-se um pouco mais a do "aceitar"...
A Mensagem renovadora de Deus se revelava a todos, a um só tempo: ricos e pobres, nobres e plebeus. O primeiro destes profetas, atuando no Reino do Norte, Amós, não era aristocrata como Isaías, mas um pastor que vivia originalmente em Tekoa, no Reino do Sul. Por volta de 752 aC, assim como Isaías, Amós também foi arrasado por um súbito Chamado que o levou ao Reino Setentrional de Israel. Ele irrompeu no antigo santuário de Beth-El e despedaçou o cerimonial ali com uma profecia de condenação. Amazias, então o sacerdote de Beth-El, tentou mandá-lo embora. Podemos ouvir a voz do sistema da época, em sua pomposa repulsa ao insólito pastor - naturalmente, ele imaginava que Amós pertencia a uma das corporações de adivinhos que vagavam em grupos e liam a sorte por dinheiro. “Vai embora, adivinho!”, disse com desdém. “Volta à terra de Judá; ganha lá o teu pão, faz lá as tuas profecias. Não queremos mais profecias em Beth-El. Este é o santuário real, o templo nacional.” Imperturbável, Amós ergueu-se em toda a sua altura e respondeu que não era nenhum pseudo-profeta errante, mas tinha um mandato direto de Javé: “Eu não era profeta, nem filho de profeta, mais boieiro, e colhia figos bravos. Porém Javé me tomou de detrás do gado, e me disse: ‘Vai-te, e profetiza ao meu povo Israel’”. Portanto, não queria o povo de Beth-El ouvir a mensagem de Javé?
O profeta Amós - Gustave Doré
Fazia parte da essência da profecia o ser solitário. Uma figura como Amós era sozinha. Rompera com os hábitos e deveres do seu passado. Não era coisa que escolhera, mas que lhe acontecera. Parecia que fora arrancado dos padrões normais de consciência e que não podia mais operar os controles habituais. Amós não fora, como o Buda, absorvido na aniquilação de si mesmo do Nirvana; ao contrário, Javé tomara o lugar do seu ego e arrebatara-o para outro mundo.
Amós foi o primeiro dos profetas a enfatizar a importância da justiça social e da misericórdia. Como o Buda, tinha aguda consciência da agonia da humanidade sofredora. Na voz de Amós, Javé falava em favor dos oprimidos, dando voz ao sofrimento mudo e impotente dos pobres. Logo no primeiro verso da profecia que nos chegou, Javé, de seu Templo em Jerusalém, clama contra a miséria em todos os países do Oriente próximo, incluindo Judá e Israel. O povo de Israel era tão ruim quanto os “goyim” (‘gentios’): ignoravam a crueldade e a opressão para com os pobres, mas Javé não o faria. Ele observava cada caso de trapaça, exploração e espantosa falta de misericódia. “Jurou Javé pela glória de Jacó: Eu não me esquecerei de todas as suas obras, para sempre”.
Tinham eles de fato a temeridade de esperar o Dia do Senhor, quando Javé exaltaria Israel? Então teriam um choque: “Ai daqueles que esperam pelo ‘Dia do Senhor’! Para que, pois, vos será este Dia de Javé? Trevas será, e não de Luz”. Achavam que eram o Povo Eleito? Tinham entendido totalmente errado a natureza da Aliança, que significava responsabilidade e não privilégio: “Ouvi esta palavra que o Senhor fala contra vós, filhos de Israel” - exclamou Amós - “contra toda a geração que fez subir da terra do Egito, dizendo:
De todas as gerações da Terra vos conheci só;
portanto, todas as vossas iniqüidades visitarei sobre vós.”
A Aliança significava que todo o povo de Israel era eleito de Deus, e tinha portanto de ser tratado com decência. Deus não intervinha na História para glorificar Israel, mas para assegurar justiça social. Esse era o seu empenho na História e, se necessário fosse, usaria o exército assírio para impor a justiça em sua própria terra.
Fica mais fácil compreender porque a maioria dos israelitas tinha reusado o convite do profeta a entrar em diálogo com Javé. Preferiam uma religião de observância apenas cultual e menos exigente, no Templo de Jerusalém ou nos velhos cultos da fertilidade de Canaã. Infelizmente, não só entre israelitas, mas em todo o mundo religioso, continua sendo assim: a Religião da misericórdia é seguida apenas por uma minoria. A maioria contenta-se com uma decorosa e conveniente adoração na sinagoga, igreja, templo ou mesquita.
Fontes e bibliografia:
Profº Airton José da Silva;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.
( comentários
“Até quando multiplicais a oração
não ouço,
porque vossas mãos estão cheias de sangue.
Lavai-vos, purificai-vos,
tirai a maldade de vossos atos de diante dos Meus Olhos:
cessai de fazer o mal;
Aprendei a fazer o bem;
procurai a justiça,
ajudai o opresso,
fazei justiça ao órfão,
tratai da causa das viúvas.”
Os profetas haviam descoberto o predominante dever da compaixão, que se tornaria a marca distintiva de todas as grandes religiões formadas na Era Axial. Todas as novas ideologias que, nesse período, se desenvolviam no mundo civilizado insistiam em que o "teste de autenticidade" da religião era que a experiência religiosa se integrasse a vida diária. Não bastava mais limitar a observância do Templo ao mundo extratemporal do mito. Após a iluminação, o homem ou mulher deve voltar ao cotidiano e praticar a misericórdia para com todos os seres vivos.
O ideal social dos profetas estava implícito no culto de Javé desde o Sinai: a história do Êxodo acentuava que Deus estava do lado dos fracos e oprimidos. A diferença era que agora os próprios israelitas eram castigados como opressores. O que mais impressiona na história de Isaías, é que na época da sua visão profética, dois profetas já pregavam a mesma mensagem(!) no caótico Reino do Norte! Como explicar? Se você pretende estudar religião, desista da arte de "entender" e aplique-se um pouco mais a do "aceitar"...
A Mensagem renovadora de Deus se revelava a todos, a um só tempo: ricos e pobres, nobres e plebeus. O primeiro destes profetas, atuando no Reino do Norte, Amós, não era aristocrata como Isaías, mas um pastor que vivia originalmente em Tekoa, no Reino do Sul. Por volta de 752 aC, assim como Isaías, Amós também foi arrasado por um súbito Chamado que o levou ao Reino Setentrional de Israel. Ele irrompeu no antigo santuário de Beth-El e despedaçou o cerimonial ali com uma profecia de condenação. Amazias, então o sacerdote de Beth-El, tentou mandá-lo embora. Podemos ouvir a voz do sistema da época, em sua pomposa repulsa ao insólito pastor - naturalmente, ele imaginava que Amós pertencia a uma das corporações de adivinhos que vagavam em grupos e liam a sorte por dinheiro. “Vai embora, adivinho!”, disse com desdém. “Volta à terra de Judá; ganha lá o teu pão, faz lá as tuas profecias. Não queremos mais profecias em Beth-El. Este é o santuário real, o templo nacional.” Imperturbável, Amós ergueu-se em toda a sua altura e respondeu que não era nenhum pseudo-profeta errante, mas tinha um mandato direto de Javé: “Eu não era profeta, nem filho de profeta, mais boieiro, e colhia figos bravos. Porém Javé me tomou de detrás do gado, e me disse: ‘Vai-te, e profetiza ao meu povo Israel’”. Portanto, não queria o povo de Beth-El ouvir a mensagem de Javé?
Fazia parte da essência da profecia o ser solitário. Uma figura como Amós era sozinha. Rompera com os hábitos e deveres do seu passado. Não era coisa que escolhera, mas que lhe acontecera. Parecia que fora arrancado dos padrões normais de consciência e que não podia mais operar os controles habituais. Amós não fora, como o Buda, absorvido na aniquilação de si mesmo do Nirvana; ao contrário, Javé tomara o lugar do seu ego e arrebatara-o para outro mundo.
Amós foi o primeiro dos profetas a enfatizar a importância da justiça social e da misericórdia. Como o Buda, tinha aguda consciência da agonia da humanidade sofredora. Na voz de Amós, Javé falava em favor dos oprimidos, dando voz ao sofrimento mudo e impotente dos pobres. Logo no primeiro verso da profecia que nos chegou, Javé, de seu Templo em Jerusalém, clama contra a miséria em todos os países do Oriente próximo, incluindo Judá e Israel. O povo de Israel era tão ruim quanto os “goyim” (‘gentios’): ignoravam a crueldade e a opressão para com os pobres, mas Javé não o faria. Ele observava cada caso de trapaça, exploração e espantosa falta de misericódia. “Jurou Javé pela glória de Jacó: Eu não me esquecerei de todas as suas obras, para sempre”.
Tinham eles de fato a temeridade de esperar o Dia do Senhor, quando Javé exaltaria Israel? Então teriam um choque: “Ai daqueles que esperam pelo ‘Dia do Senhor’! Para que, pois, vos será este Dia de Javé? Trevas será, e não de Luz”. Achavam que eram o Povo Eleito? Tinham entendido totalmente errado a natureza da Aliança, que significava responsabilidade e não privilégio: “Ouvi esta palavra que o Senhor fala contra vós, filhos de Israel” - exclamou Amós - “contra toda a geração que fez subir da terra do Egito, dizendo:
De todas as gerações da Terra vos conheci só;
portanto, todas as vossas iniqüidades visitarei sobre vós.”
A Aliança significava que todo o povo de Israel era eleito de Deus, e tinha portanto de ser tratado com decência. Deus não intervinha na História para glorificar Israel, mas para assegurar justiça social. Esse era o seu empenho na História e, se necessário fosse, usaria o exército assírio para impor a justiça em sua própria terra.
Fica mais fácil compreender porque a maioria dos israelitas tinha reusado o convite do profeta a entrar em diálogo com Javé. Preferiam uma religião de observância apenas cultual e menos exigente, no Templo de Jerusalém ou nos velhos cultos da fertilidade de Canaã. Infelizmente, não só entre israelitas, mas em todo o mundo religioso, continua sendo assim: a Religião da misericórdia é seguida apenas por uma minoria. A maioria contenta-se com uma decorosa e conveniente adoração na sinagoga, igreja, templo ou mesquita.
Fontes e bibliografia:
Profº Airton José da Silva;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.
( comentários