Como estavam junto aos rios da Babilônia, alguns dos exilados inevitavelmente achavam que não podiam praticar sua religião fora da Terra Prometida. Os deuses pagãos sempre tinham sido territoriais, e para alguns parecia impossível entoar cânticos a Javé num país estrangeiro. Um novo profeta, porém, pregava a calma. Nada sabemos dele, e isso pode ser significativo, porque seus oráculos e salmos não dão sinal de uma luta pessoal, como as travadas pelos sus antecessores. Como suas obras foram depois acrescentadas aos oráculos de Isaías, ele é em geral chamado de o “Segundo Isaías”. No exílio, alguns dos judeus teriam se passado para a adoração dos antigos deuses da Babilônia, mas outros foram levados a uma nova consciência religiosa.
O Templo de Javé estava em ruínas; haviam sido destruídos os velhos santuários em Beth-El e Hebron. Na Babilônia, os judeus não podiam tomar parte em liturgias que haviam sido fudamentais para sua vida religiosa na pátria-mãe. Agora só tinham Javé. O Segundo Isaías deu mais esse passo e declarou que Javé não era só o maior dos deuses. Ele era o Único Deus.
O Primeiro Isaías fizera da História um aviso divino; após a catástrofe, em seu Livro de Consolação, o Segundo Isaías traz nova esperança para o futuro. Se Javé já resgatara Israel uma vez, então podia fazê-lo de novo. Ele planejava as questões da História; a seus olhos, todos os gentios (estrangeiros) não passavam de uma gota d’água num balde. O segundo Isaías imaginava as velhas divindades da Babilônia sendo amontoadas numa carroça e afastando-se aos trancos na direção do poente. Acabara o tempo deles: “Porventura não sou eu Javé?” perguntam repetidas vezes seus escritos, “e não há outro Deus senão eu”.
“E que antes de mim nenhum deus se formou,
e depois de mim nenhum haverá.
Eu, eu sou Javé,
e fora de mim não há Salvador.” - Isaías, 43:10-12
Este Segundo Isaías não perdeu tempo denuciando os deuses dos goym, que, desde a catástrofe, podiam estar sendo vistos como vitoriosos. Calmamente assumiu que Javé – não Marduk nem Baal – realizara os grandes feitos míticos que haviam criado o mundo. Pela primeira vez, os israelitas interessavam-se a sério pelo papel de Javé na criação, talvez por causa do renovado contato com os mitos cosmológicos da Babilônia. Não tentavam, por certo, uma versão científica das origens físicas do Universo, mas buscavam encontrar conforto no duro mundo do presente. Se o seu Deus derrotara os monstros do caos nos tempos primordiais, seria simples redimir os israelitas exilados. Vendo a semelhança entre o mito do Êxodo e as narrativas pagãs da vitória sobre o caos aquático no começo dos tempos, o Segundo Isaías exortou seu povo a esperar com confiança uma nova demonstração da força divina. Aqui, por exemplo, ele se refere à vitória de Baal sobre Lotan, o monstro marinho da mitologia da criação cananéia, que também se chamava Rahab, o Crocodilo (tannïn) e o Abismo (tehõn):
"Despertai, despertai! Vesti-vos de força.
Braço de Javé,
despertai, como antes,
em tempos de gerações há muito passadas.
Não dividistes Rahab em dois,
e varaste o Dragão (tannïn)?
Não secaste o mar,
as águas do grande Abismo (tehõn)
para fazer do leito do mar uma estrada
por onde os redimidos passassem?” - Isaías, 51:9-10
Javé absorvera afinal seus “rivais” na imaginação religiosa de Israel. No exílio, a atração do paganismo finalmente perdera sua força, e nascera a religião do judaísmo. Numa época em que se poderia, razoavelmente, esperar que o culto de Javé perecesse, ele se tornou o meio que possibilitava às pessoas encontrar esperança em circunstâncias impossíveis. Javé, portanto, tornara-se o Único Deus.
Não houve tentativa de justificar filosoficamente essas mudanças. Como sempre, a nova teologia vencera não porque pudesse ser racionalmente demonstrada, mas porque era eficaz na prevenção ao desespero e inspirava esperança. Deslocados e afastados como estavam, os judeus não mais achavam estranha e perturbadora a descontinuidade do culto de Javé. Esta, na realidade, devia falar profundamente à condição deles. Contudo, o que permanece intrigante é que continuva não havendo nada de "aconchegante" na imagem de Deus do Segundo Isaías. Ela continuava, como sempre esteve, fora do alcance da mente humana:
"Porque Meus Pensamentos não são os vossos pensamentos,
mem os vossos caminhos são os Meus Caminhos.
Porque, assim como os Céus são mais altos que a Terra,
assim os Meus Caminhos mais altos que os vossos caminhos,
e os Meus Pensamentos mais altos que os Vossos Pensamentos." - Isaías, 55:8-9
A realidade de Deus está além do alcance das palavras e conceitos. Tampouco iria Javé fazer sempre o que seu povo esperava. Num trecho inexplicável, de particular pungência hoje, o profeta aspira por um tempo em que Egito e Assíria também se tornassem o povo de Javé, juntamente com Israel. Javé diria:
“Bendito seja o povo do Egito e Assíria, a obra das Minhas Mãos, e Israel a Minha herança.” - Isaías, 19:24,25
A idéia de "O Senhor dos Exércitos" de Israel tornara-se o Símbolo de uma Realidade Transcendente que fazia as tacanhas interpretações da eleição do Israel como único povo de Deus parecerem mesquinhas e inadequadas. Mas as concepções de Deus do povo judeu permaneceram, como sempre foram, interpretações fiéis do que eles compreendiam da Verdade última, independentes do que gostariam de acreditar. Por mais que aquilo que entendessem da Vontade de Deus contrariasse suas expectativas e anseios (Jonas chegou a tentar fugir, literalmente), os profetas judaicos nunca renegaram a sua missão. De todas as religiões da antiguidade, a doutrina de Israel era a única que não aludia a algum "deus-joguete" em mãos humanas, passível de ser manipulado mediante sacrifícios e rituais. Este Deus não era moldável, mas moldava seus devotos: exigia justiça, serviço em prol dos sofredores e Amor incondicional. Se hoje esses princípios nos parecem comuns, é porque geralmente não conhecemos e tendemos a não levar em consideração o contexto histórico em que surgiram: uma Era de dureza e crueldade absolutas, em que apenas a força garantia conquistas, e as relações humanas eram puramente interesseiras. Os elevados ideais trazidos pelos profetas (os mesmos ideais que as sociedades modernas perseguem até hoje), surgiram na infância da humanidade, quando "religião" era sinônimo de sangue derramado, orgias sexuais e a adoração dos animais e dos elementos.
Os demais povos da região do "Centro da Terra" da Antiguidade nunca deixaram de se impressionar com as gritantes diferenças entre as concepções religiosas dos israelitas e as suas próprias. Quanto a nós, provavelmente nunca entenderemos a origem dos ideais que levaram os descendentes de Abraão a mudar, para sempre, o "Espírito da Terra".
Fontes e bibliografia:
Profº Shigeyuki Nakanose;
Profª Enilda de Paula Pedro;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.
( comentários
O Templo de Javé estava em ruínas; haviam sido destruídos os velhos santuários em Beth-El e Hebron. Na Babilônia, os judeus não podiam tomar parte em liturgias que haviam sido fudamentais para sua vida religiosa na pátria-mãe. Agora só tinham Javé. O Segundo Isaías deu mais esse passo e declarou que Javé não era só o maior dos deuses. Ele era o Único Deus.
O Primeiro Isaías fizera da História um aviso divino; após a catástrofe, em seu Livro de Consolação, o Segundo Isaías traz nova esperança para o futuro. Se Javé já resgatara Israel uma vez, então podia fazê-lo de novo. Ele planejava as questões da História; a seus olhos, todos os gentios (estrangeiros) não passavam de uma gota d’água num balde. O segundo Isaías imaginava as velhas divindades da Babilônia sendo amontoadas numa carroça e afastando-se aos trancos na direção do poente. Acabara o tempo deles: “Porventura não sou eu Javé?” perguntam repetidas vezes seus escritos, “e não há outro Deus senão eu”.
“E que antes de mim nenhum deus se formou,
e depois de mim nenhum haverá.
Eu, eu sou Javé,
e fora de mim não há Salvador.” - Isaías, 43:10-12
Este Segundo Isaías não perdeu tempo denuciando os deuses dos goym, que, desde a catástrofe, podiam estar sendo vistos como vitoriosos. Calmamente assumiu que Javé – não Marduk nem Baal – realizara os grandes feitos míticos que haviam criado o mundo. Pela primeira vez, os israelitas interessavam-se a sério pelo papel de Javé na criação, talvez por causa do renovado contato com os mitos cosmológicos da Babilônia. Não tentavam, por certo, uma versão científica das origens físicas do Universo, mas buscavam encontrar conforto no duro mundo do presente. Se o seu Deus derrotara os monstros do caos nos tempos primordiais, seria simples redimir os israelitas exilados. Vendo a semelhança entre o mito do Êxodo e as narrativas pagãs da vitória sobre o caos aquático no começo dos tempos, o Segundo Isaías exortou seu povo a esperar com confiança uma nova demonstração da força divina. Aqui, por exemplo, ele se refere à vitória de Baal sobre Lotan, o monstro marinho da mitologia da criação cananéia, que também se chamava Rahab, o Crocodilo (tannïn) e o Abismo (tehõn):
"Despertai, despertai! Vesti-vos de força.
Braço de Javé,
despertai, como antes,
em tempos de gerações há muito passadas.
Não dividistes Rahab em dois,
e varaste o Dragão (tannïn)?
Não secaste o mar,
as águas do grande Abismo (tehõn)
para fazer do leito do mar uma estrada
por onde os redimidos passassem?” - Isaías, 51:9-10
Javé absorvera afinal seus “rivais” na imaginação religiosa de Israel. No exílio, a atração do paganismo finalmente perdera sua força, e nascera a religião do judaísmo. Numa época em que se poderia, razoavelmente, esperar que o culto de Javé perecesse, ele se tornou o meio que possibilitava às pessoas encontrar esperança em circunstâncias impossíveis. Javé, portanto, tornara-se o Único Deus.
Não houve tentativa de justificar filosoficamente essas mudanças. Como sempre, a nova teologia vencera não porque pudesse ser racionalmente demonstrada, mas porque era eficaz na prevenção ao desespero e inspirava esperança. Deslocados e afastados como estavam, os judeus não mais achavam estranha e perturbadora a descontinuidade do culto de Javé. Esta, na realidade, devia falar profundamente à condição deles. Contudo, o que permanece intrigante é que continuva não havendo nada de "aconchegante" na imagem de Deus do Segundo Isaías. Ela continuava, como sempre esteve, fora do alcance da mente humana:
"Porque Meus Pensamentos não são os vossos pensamentos,
mem os vossos caminhos são os Meus Caminhos.
Porque, assim como os Céus são mais altos que a Terra,
assim os Meus Caminhos mais altos que os vossos caminhos,
e os Meus Pensamentos mais altos que os Vossos Pensamentos." - Isaías, 55:8-9
A realidade de Deus está além do alcance das palavras e conceitos. Tampouco iria Javé fazer sempre o que seu povo esperava. Num trecho inexplicável, de particular pungência hoje, o profeta aspira por um tempo em que Egito e Assíria também se tornassem o povo de Javé, juntamente com Israel. Javé diria:
“Bendito seja o povo do Egito e Assíria, a obra das Minhas Mãos, e Israel a Minha herança.” - Isaías, 19:24,25
A idéia de "O Senhor dos Exércitos" de Israel tornara-se o Símbolo de uma Realidade Transcendente que fazia as tacanhas interpretações da eleição do Israel como único povo de Deus parecerem mesquinhas e inadequadas. Mas as concepções de Deus do povo judeu permaneceram, como sempre foram, interpretações fiéis do que eles compreendiam da Verdade última, independentes do que gostariam de acreditar. Por mais que aquilo que entendessem da Vontade de Deus contrariasse suas expectativas e anseios (Jonas chegou a tentar fugir, literalmente), os profetas judaicos nunca renegaram a sua missão. De todas as religiões da antiguidade, a doutrina de Israel era a única que não aludia a algum "deus-joguete" em mãos humanas, passível de ser manipulado mediante sacrifícios e rituais. Este Deus não era moldável, mas moldava seus devotos: exigia justiça, serviço em prol dos sofredores e Amor incondicional. Se hoje esses princípios nos parecem comuns, é porque geralmente não conhecemos e tendemos a não levar em consideração o contexto histórico em que surgiram: uma Era de dureza e crueldade absolutas, em que apenas a força garantia conquistas, e as relações humanas eram puramente interesseiras. Os elevados ideais trazidos pelos profetas (os mesmos ideais que as sociedades modernas perseguem até hoje), surgiram na infância da humanidade, quando "religião" era sinônimo de sangue derramado, orgias sexuais e a adoração dos animais e dos elementos.
Os demais povos da região do "Centro da Terra" da Antiguidade nunca deixaram de se impressionar com as gritantes diferenças entre as concepções religiosas dos israelitas e as suas próprias. Quanto a nós, provavelmente nunca entenderemos a origem dos ideais que levaram os descendentes de Abraão a mudar, para sempre, o "Espírito da Terra".
Fontes e bibliografia:
Profº Shigeyuki Nakanose;
Profª Enilda de Paula Pedro;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.
( comentários