quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Origens #2: Abraão e o monoteísmo

O velho Abraaão: "Pai de uma Multidão"

Conforme exposto anteriormente, “J” e “E” são formas para se referir aos primeiros autores bíblicos desconhecidos - "J" se refere a Deus como "Javé" e "E" como "Elohim". Estudiosos identificam ainda mais dois autores desconhecidos no Antigo Testamento (deste ponto em diante designado como ‘AT’): ‘S’, de ‘Sacerdotal’ (o termo original é ‘P’, de ‘Priestly’, no inglês) e ‘D’, o deuteronomista.

Em muitos aspectos J e E partilhavam das perspectivas religiosas de seus vizinhos do Oriente Médio, mas suas versões mostram que no século VIII aC os israelitas começavam a desenvolver uma visão distinta própria. J, por exemplo, começa sua história de Deus com uma versão da criação do mundo que, comprada com a do Enuma Elish, é surpreendentemente superficial:

“...no dia em que Javé fez a Terra e os céus: e toda planta do campo que ainda não estava na terra, e toda a erva do campo que ainda não brotava; porque Deus não tinha feito chover sobre a Terra, e não havia homem para lavrar a terra. Um vapor, porém subia da terra. E formou Deus Javé o homem (adãm) de pó da terra (adãmah), e soprou em suas narinas o fôlego da vida: e o homem se tornou uma alma vivente.”

Em oposição aos demais mitos religiosos da mesma época, J utiliza-se de um jogo de palavras – adãmah = adãm = terra – para deixar claro que o homem não compartilha da mesma essência de seu Deus, mas foi feito por Ele da terra, e a ela pertence (‘És pó e ao pó voltarás’).

Era uma partida inteiramente nova. Em vez de concentrar-se na criação do mundo e no período pré-histórico, como seus contemporâneos pagãos da Mesopotâmia e de Canaã, J está mais interessado no tempo histórico comum. Só haveria verdadeiro interesse pela Criação em Israel quando o autor S escreveu sua majestosa versão do que viria a se tornar o primeiro capítulo do livro de Gênesis. Intrigante notar que J não está absolutamente certo de que Javé é o único Criador dos céus e da Terra: “Façamos o homem a nossa imagem e semelhança...”

Também ao contrário de seus vizinhos pagãos, J não descarta a história mundana como profana, frágil e insubstancial em comparação com o tempo sagrado dos deuses. Ele passa muito rapidamente pelos acontecimentos da pré-História até chegar ao fim do período mítico, que inclui as narrativas do Dilúvio e da Torre de Babel, e chega ao início da história do povo de Israel. Esta começa abruptamente no capítulo 12, quando o homem Abrão, que mais tarde será chamado Abraão, (‘Pai de uma Multidão’), recebe a ordem de Javé para deixar sua família em Haran, hoje Turquia Oriental, e migrar para Canaã, perto do mar Mediterrâneo. Sabemos que o pai dele, Terah, um pagão, já migrou para o oeste com a família, partindo de Ur. Então Javé diz a Abraão que ele tem um destino especial: vai tornar-se o pai de uma grande nação, que um dia será mais numerosa que as estrelas no céu, e um dia seus descendentes possuirão a terra de Canaã. A versão de J do chamado de Abraão dá o tom para a futura história de seu Deus.

No Oriente Médio antigo, o "mana" divino era experimentado no ritual e no mito. Não se esperava, por exemplo que Marduk, Baal ou Anat se envolvessem nas vidas comuns e profanas de seus adoradores: suas ações se haviam realizado no tempo sagrado e agora encontravam-se ausentes, a não ser para intervir em favor deste ou daquele devoto em situações muitíssimo especiais. O Deus de Israel, no entanto, tornava seu poder efetivo em fatos atuais no mundo real, no aqui-agora. Era vivenciado como uma presença real e imediata. Sua primeira revelação de si mesmo consiste de uma ordem – que Abraão deixe seu povo e viaje para a terra de Canaã.

Mas... afinal, quem é Javé?? Adorava Abraão o mesmo Deus que Moisés, sendo que o conhecia por um nome diferente? Isso seria, claro, uma questão de primeira importância para nós, hoje, mas a Bíblia parece curiosamente vaga sobre o assunto, e dá respostas conflitantes a esta pergunta. J diz que os homens adoravam Javé desde a época do neto de Adão. Mas no século VI aC, S parece sugerir que os israelitas jamais tinham ouvido falar em Javé até ele aparecer a Moisés na Sarça Ardente. No texto de S, Javé explica que Ele era de fato o Deus de Abraão, como se esta idéia fosse algo controvertida: diz a Moisés que Abraão o chamara “El Shaddai” e não conhecia o Divino Nome "Javé" ('JAVEH' = 'EU SOU').

Essa discrepância não parece preocupar os escritores bíblicos ou seus editores. J chama Deus de Javé do princípio ao fim. Na época em que ele escrevia, Javé era o Deus de Israel e só isso importava. A religião israelita era pragmática. E não muito preocupada com esse tipo de detalhe. Contudo, não devemos supor que Abraão ou Moisés acreditassem em Deus como nós fazemos hoje. Estamos tão familiarizados com as histórias da Bíblia que tendemos a projetar sempre os nossos conhecimentos prévios da religião judaica atual naqueles primeiros personagens históricos. Por conseguinte, supomos que os três patriarcas de Israel – Abraão, seu filho Isaac e seu neto Jacó – já eram monoteístas que acreditavam no mesmo Deus que nós, hoje. Não parece ter sido assim. Provavelmente seria mais exato tentar compreender a esses primeiros hebreus como pagãos que partilhavam de muitas das crenças religiosas de seus vizinhos de Canaã. Certamente acreditavam na existência de divindades como Marduk, Baal e Anat.

Chocante? Podemos ir ainda mais longe. Não é improvável que o Deus de Abraão fosse El, o Sumo Deus de Canaã – já que Deus se apresenta a Abraão como “El Shaddai” (‘El da Montanha’), um dos títulos tradicionais de El. Em outra parte, ele é chamado “El Elyon” (‘Deus Altíssimo’) ou “El de Bethel”...

Existe muita informação fascinante a respeito das origens do Judaísmo e dos conceitos que viriam a formar a base das religiões ocidentais, sem dúvida. O verdadeiro legado da religião dos hebreus para a humanidade, porém, seria a absolutamente nova concepção do Deus Único, Transcendente e Imanente a um só tempo; Santo, e, principalmente, Inexplicável. Antes disto (e também depois, até os nossos dias) praticamente todas as religiões se esforçaram em tentar explicar detalhes de Quem é Deus, de como são os planos espirituais, da natureza da alma e as minúcias do que ocorre após a morte. Os hebreus trouxeram a noção de que Deus está além de qualquer possibilidade do entendimento humano, e que a única maneira de nos aproximarmos dele é simplesmente aceitando o Mistério que Ele representa, e colocando a Busca pela sua Verdade acima de qualquer outra coisa, em nossas vidas. O imperador romano Tito que o diga, ele que ao invadir Israel e entrar no Templo de Jerusalém, esperando encontrar alguma imensa estátua de ouro, representando aquele Deus que os judeus tanto amavam, achou nada além de um aposento vazio. Embora ele por certo não percebesse, era exatamente no Vazio que se encontrava o Segredo, a chave para a compreensão da fé e da força daquele povo misterioso, que teimava em não se prostrar diante das imagens dos seus deuses e nem se deixar conquistar...


Nota: O termo "pagão", todas as vezes que utilizado neste blog, refere-se ao termo culto da língua portuguesa que designa as religiões politeístas da antiguidade (Dicionário Priberan - Paganismo: antiga religião politeísta dos Gregos e Romanos; religião dos pagãos; os pagãos; politeísmo; idolatria). O uso feito da palavra neste espaço não tem, portanto, nenhuma conotação pejorativa.


Fonte:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras).



( comentários