quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Origens #4: Da intolerância

Moisés e Aarão diante do Faraó - Mestre de Dinteville, 1537

A crença israelita em Deus era profundamente pragmática. Abraão e Jacó depositarem sua fé em El porque ele funcionava para eles. Não se sentaram para provar que ele existia; El não era uma abstração filosófica. No mundo da antiguidade, o mana (sensação intuitiva da existência de uma realidade superior, o ‘reino dos deuses’) era um fato da vida evidente por si mesmo, e um deus provava seu valor se pudesse transmitir isso efetivamente. Esse pragmatismo seria sempre um fator na história da idéia de Deus. As pessoas continuariam a adotar determinada concepção do divino porque funcionava para elas e não por ser científica ou filosófica/historicamente correta.

Anos mais tarde, Jacó voltou de Haran com suas esposas e família, e, ao reentrar na terra de Canaã, experimentou outra estranha epifania. No Vau de Jabbok, na Cisjordânia, encontrou um estranho com quem lutou durante toda a noite. Ao amanhecer, como a maioria dos seres espirituais, o adversário disse que tinha que partir, mas Jacó o segurou; não o soltaria enquanto não soubesse o seu nome. No mundo antigo, saber o nome de alguém dava à pessoa um certo poder sobre o outro, e o estranho pareceu relutante em revelar essa informação. Mas, à medida em que se desenrolava o estranho acontecimento, Jacó percebeu que o adversário não era outro que não o próprio El!

“E Jacó lhe perguntou, e disse: ‘Dá-me, peço-te, a saber o teu nome’. E ele disse: ‘Por que perguntas meu nome?’. E abençoou-o ali. E chamou Jacó o nome daquele lugar Peni-El (Rosto de El), porque dizia:’Tenho visto El (Deus) face a face, e a minha alma foi salva.” - Gênesis, 32: 30-31.

O espírito dessa epifania está mais próximo da Ilíada de Homero do que do monoteísmo judaico posterior, quando tal contato íntimo com o Divino teria soado como uma idéia blasfema.

Mas, embora mostrem os patriarcas encontrando seus deuses quase do mesmo modo que seus contemporâneos pagãos, essas primeiras narrativas introduzem na História da humanidade uma nova categoria de experiência religiosa. Por toda a Bíblia, Abraão é chamado “homem de fé”. Hoje, tendemos a definir fé como a aceitação intelectual de um credo, mas, como vimos, os autores bíblicos não viam a fé em Deus como uma crença abstrata ou metafísica. Quando louvam a fé de Abraão, não estão comentando sobre a ortodoxia dele, (a aceitação da teologia correta acerca de Deus), mas sua confiança, mais ou menos como quando dizemos que temos fé numa pessoa ou num ideal. Na Bíblia, Abraão é um homem de fé porque confia em que Deus cumprirá suas promessas, mesmo que pareçam absurdas. Como poderia Abraão ser o pai de uma grande nação quando sua esposa, Sara, era estéril? Na verdade, a própria idéia de que ela poderia ter um filho é tão inverossímil – Sara já passara da menopausa – que quando ouvem a promessa, Sara ri. Quando, contra todas as possibilidades, o filho nasce, eles o chamam de Isaac, um nome que pode significar “risada”.

Mas a felicidade parece acabar quando Deus faz uma apavorante exigência: Abraão deve sacrificar-lhe seu único filho.

O sacrifício humano era comum no mundo pagão. Era cruel, mas tinha uma lógica e uma explicação. Muitas vezes acreditava-se que o primeiro filho era um rebento de um deus. Ao gerar a criança, a energia do deus esgotava-se,e por isso, para reabastecê-la e assegurar a circulação de todo o mana existente, o primogênito era devolvido ao pai divino. O caso de Isaac era bem diferente, porém. Fora uma dádiva de Deus, mas não seu filho natural. Não havia motivo para sacrifício nem necessidade de se reabastecer energia. Na verdade, o sacrifício se transformaria num grande contra-senso toda a vida de Abraão, que se baseava na promessa de que ele seria o pai de uma grande nação. Pode-se notar que essa idéia de Deus já começava a ser concebida de um modo bastante diferente daquelas das demais divindades do mundo antigo. Este Deus não partilhava da situação humana; não apresentava as mesmas fraquezas e limitações de seus adoradores; não precisava do influxo de energia de homens e mulheres. Pertencia a uma categoria completamente nova, e tinha poderes acima de qualquer outra figura do panteão pagão.

Abraão decide confiar nesse Deus. Ele e Isaac partem numa viagem de três dias ao Monte Moriat, que seria mais tarde o local do Templo em Jerusalém. Isaac, que nada sabia da ordem divina, carregou ele mesmo a lenha para seu próprio holocausto. Só no último instante, quando Abraão já segurava o punhal, Deus revela que tudo fora apenas um teste, no qual ele passara com louvor. Abraão não questionou. Ele não temeu. Não duvidou da sabedoria de Deus nem mesmo quando Este lhe pediu para sacrificar o próprio filho. Assim, acabara de se mostrar digno da promessa divina e se tornar pai de uma poderosa nação, cuja descendência seria tão numerosa quanto as estrelas do céu ou os grãos de areia na praia.

Contudo, para ouvidos modernos, esta é uma história muito difícil de ser compreendida. Muitos a classificariam como horrível, entenderiam este Deus como um déspota e sádico, e muita gente hoje o rejeita justamente por conta de tais histórias. A história do Êxodo do Egito, quando Deus conduziu Moisés e os filhos de Israel à liberdade, é igualmente difícil para as sensibilidades modernas.

A história é bem conhecida, mesmo pelos não religiosos: o faraó relutava em deixar partir o povo de Israel; para forçá-lo, Deus faz com que se abatam sobre o Egito dez pavorosas pragas. O Nilo se transforma em sangue; a terra é devastada por gafanhotos e rãs; todo o país é mergulhado em trevas impenetráveis. Por fim, a mais pesada de todas as pragas – o Anjo da Morte é enviado para matar os primogênitos de todos os egípcios., poupando apenas os filhos dos hebreus escravizados. Depois disso, o faraó finalmente decide libertar os israelitas e deixá-los partir; mas logo em seguida muda de idéia e sai a persegui-los com seus exércitos. Alcança-os no mar dos Juncos*, mas Deus salva os israelitas abrindo o mar e permitindo que o cruzem a pé. Quando os egípcios seguem em seu encalço, as águas se fecham e afogam faraó e seus exércitos.

Este é o Deus em que acreditavam os antigos hebreus, os pais da religiosidade ocidental. Ele toma partido de um determinado grupo e não demonstra misericórdia para com aqueles que não são seus favoritos. Se a idéia de Deus continuasse nesses moldes, é bem provável que tivesse desaparecido há muito tempo na poeira de História. Porém, é muito importante saber que o mito final do Êxodo, como nos chegou nas páginas do AT, não pretende ser uma versão literal dos fatos. Traria, isto sim, uma mensagem clara para os povos do Oriente Médio, já acostumados a crer numa divindade tribal abrindo mares ao meio - ao contrário de Marduk e Baal, que realizaram seus feitos no tempo pré-histórico mítico, dizia-se que Javé dividira um mar físico, no mundo profano dos homens e no tempo histórico.

Não se faz muita tentativa de realismo: quando Moisés e Aarão visitam o faraó, os magos egípcios atiram seus bastões ao chão e estes se transformam em serpentes. Outro exemplo, quando o mar se abre em duas partes, os guerreiros do faraó não titubeiam em seguir o povo de Israel, em meio às águas prodigiosamente abertas, mesmo sabendo que um Deus poderosíssimo guardava aquela gente... Por essas e muitas outras passagens, percebe-se que os israelenses, ao contar a história do Êxodo, não estavam tão interessados em exatidão histórica quanto nós estaríamos. Ao contrário, tudo leva a crer que queriam realçar o significado dos fatos reais, quaisquer que tenham sido.

Mas veremos que Javé não continuou sendo o Deus terrível e impiedoso do Êxodo, embora o mito tenha sido importante em todas as três grandes religiões monoteístas. Por mais surpreendente que pareça, os israelenses iriam transformar essa mesma idéia de Deus num irreconhecível Símbolo de Transcendência e Misericórdia. Porém, a sangrenta história do Êxodo continuaria inspirando perigosos conceitos do divino, e uma teologia vingativa (como, infelizmente, ocorre até os dias de hoje). No século VII aC, o autor do livro do Deuteronômio (‘D’), usaria o velho mito para ilustrar a apavorante Teologia da Escolha, que em diferentes épocas desempenhou um papel fatídico na história das religiões. Como qualquer idéia humana, pode-se explorar e abusar da de Deus. O mito do Povo Eleito, a "escolha divina", muitas vezes inspirou uma teologia tacanha, tribal, desde a época do Deuteronomista até o fundamentalismo judaico, cristão e muçulmano infelizmente reinante em nossos dias.


* Uma curiosidade: Mar dos Juncos é o nome correto do "mar" que o povo de Israel atravessou, e não "Mar Vermelho", como ficou consagrado no ocidente devido a um erro de impressão na chamada "Bíblia do Rei Jaime", a primeira em tradução inglesa: "Sea of Reeds" (Mar dos Juncos) é o correto, e não "Red Sea" (Mar Vermelho).


Fontes e bibliografia:
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong / "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", 1999 - idem (Companhia das Letras);
"The Biblical Archeologist #25", 1962 - George E Mendenhall (London`Publishing);
"The Hebrew Conquest of Palestine", 1962 - Idem (Idem).


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