terça-feira, 30 de outubro de 2007

Enuma Elish


O “Enuma Elish” é o poema épico babilônico. Escrito em sete tábuas de argila, data do século XII aC, no mínimo, e foi encontrado no século XIX nas ruínas da biblioteca de Assurbanípal, em Nínive, próximo da atual cidade de Mossul, no Iraque. Nele é contada a história da origem dos deuses, dos homens e do universo.

Segundo o Enuma Elish, os deuses surgiram aos pares, de uma Massa informe, aguada – uma substância que pertencia, ela própria, ao mundo divino. No mito babilônico – como depois na própria Bíblia – não houve criação a partir do nada, uma idéia inexistente no mundo antigo. Antes que existissem os deuses ou os seres humanos, havia essa Matéria Prima Sagrada, desde toda a eternidade. Ao tentar imaginar esse material espiritual divino, os babilônios pensaram que deveria ser semelhante às terras pantanosas da Mesopotâmia, onde as inundações ameaçavam constantemente destruir as frágeis obras dos homens. No Enuma Elish, o caos não é, portanto, uma massa ígnea fervilhante, mas um bolo mole no qual não existem limites, definição ou identidade.

“Quando o doce e o amargo se misturaram, nenhum junco foi trançado, nenhuma palha sujou a água, os deuses não tinham nome, natureza ou futuro.” - Enuma Elish

Então surgiram três deuses do pântano primal: “Apsu”, o deus das águas dos rios, sua esposa “Tiamat”, deusa do mar salgado e “Mummu”, o “Ventre do Caos”. Mas esses deuses eram, por assim dizer, um modelo primitivo inferior, que precisava de aperfeiçoamentos. Os nomes “Apsu” e “Tiamat” podem ser traduzidos como “abismo”, “vazio” ou “fosso sem fundo”. Eles partilhavam a Informe Inércia original, e ainda não haviam atingido uma identidade nítida. Em conseqüência, emanou deles uma sucessão de outros deuses, num processo conhecido como “Emanação”, que iria se tornar muito importante na história da idéia de Deus. Os novos deuses surgiram, um do outro, aos pares, cada um dos quais adquirindo uma maior definição que o anterior, à medida em que avançava essa evolução divina. Primeiro vieram “Lahmu” e “Lahamn” (os nomes significam ‘aluvião’: água e terra continuam misturados). Em seguida “Ansher” e “Kishar”, identificados respectivamente com os horizontes do céu e do mar. Depois vieram “Anu” (o céu) e “Ea” (a terra), e pareceram completar o processo. O mundo divino tinha céu, rios e terra, distintos e separados uns dos outros. Mas a criação apenas começara: as forças do caos e desintegração só podiam ser mantidas à distância graças a uma luta penosa e incessante. Os deuses novos, dinâmicos, rebelaram-se contra seus pais, mas embora Ea conseguisse dominar Apsu e Mummu, não pôde submeter Tiamat, que produziu toda uma raça de monstros deformados para lutar por ela. Felizmente, Ea tinha um filho maravilhoso: “Marduk”, o deus sol, o mais perfeito de toda a linhagem divina. Numa reunião da Grande Assembléia dos deuses, Marduk prometeu combater Tiamat, com a condição de tornar-se governante deles. Contudo, só com grande dificuldade conseguiu matar Tiamat, após uma longa e perigosa batalha. Nesse mito, a Criação é uma luta, travada laboriosamente contra dificuldades arrasadoras.

Mas Marduk acaba de pé sobre o vasto cadáver de Tiamat, e decidiu criar um novo mundo: dividiu o corpo de Tiamat (o mar) em dois, para formar o arco do céu e dos homens; depois, criou as leis que iriam manter tudo em seu devido lugar. Devia-se alcançar a ordem. Mas a vitória não era completa. Tinha de ser restabelecida, por meio de uma cerimônia especial, ano após ano. Em conseqüência, os deuses se reuniram na Babilônia, centro da nova Terra, e construíram um templo onde se podiam realizar os ritos celestes. O resultado foi o grande Zigurate (torre-templo) em homenagem a Marduk, “o templo terreno, símbolo do Céu infinito”. Quando ficou concluído, Marduk tomou seu lugar na reunião e os deuses gritaram: “Esta é Babilônia, cidade querida do deus (Marduk), seu amado lar!”. Depois realizaram a Leitura Sagrada “da qual o universo recebe a sua estrutura, o mundo oculto se faz claro e os deuses têm seus lugares atribuídos no universo”. Essas leis e rituais são obrigatórios para todos; até os deuses têm de observa-los para garantir a sobrevivência da criação.

O mito expressa o sentido interior da civilização, na visão dos babilônios. Eles sabiam muito bem que haviam sido seus próprios ancestrais que tinham construído o Zigurate, mas a história do Enuma Elish articulava a crença em que sua empresa criativa só podia durar se partilhasse do poder do divino. O ritual da Leitura Sagrada que celebravam no Ano Novo fora criado antes que os seres humanos passassem a existir: estava escrita na própria natureza das coisas, à qual até os deuses tinham de se submeter. O mito também expressava a convicção de que a Babilônia era um lugar sagrado, centro do mundo e lar dos deuses - uma idéia crucial em quase todos os sistemas religiosos da Antiguidade. A idéia de uma cidade santa, onde homens e mulheres se sentiam em íntimo contato com o poder sagrado, fonte de toda existência e eficiência, seria importante em todas as três religiões monoteístas.

Por fim, quase como uma reconsideração, Marduk criou a humanidade. Pegou “Kingu” (o aparvalhado consorte de Tiamat), matou-o e modelou o primeiro homem misturando o sangue divino com o pó. Os deuses observaram, pasmos admirados. Há, porém, certo humor nessa visão mítica da origem da humanidade, que não é de modo algum o auge da criação, mas deriva de um dos deuses mais estúpidos e ineficazes. Mas a história estabelecia outro ponto importante: o primeiro homem fora criado da substância de um deus. Portanto, partilhava da natureza divina, por mais limitada que fosse a forma. Não havia fosso entre os seres humanos e os deuses. O mundo natural, homens, mulheres e os próprios deuses, todos partilhavam da mesma natureza e derivavam da mesma substância divina. A visão pagã era holística, isto é, deuses não eram separados de homens, numa esfera ontológica separada. A divindade não era necessariamente diferente da humanidade. Portanto, não havia necessidade de uma revelação especial dos deuses, que baixasse orientações divinas do alto à Terra. Os deuses e seres humanos partilhavam da mesma situação, sendo a única diferença que os deuses eram maiores, mais poderosos e imortais.

Essa visão holística não se limitou ao oriente médio, era comum no mundo antigo. No século VI aC, Píndaro expressou a versão grega dessa crença em sua ode sobre os jogos olímpicos:

Única é a raça, única,
de homens e deuses;
de uma única mãe uns e outros tiramos alento.
Mas uma diferença de poder
Em tudo nos mantém separados;
Pois um é o mesmo que nada,
mas o brônzeo céu continua
Um hábito fixo para sempre.
Contudo podemos, em grandeza da mente
Ou do corpo, ser como os Imortais.


Píndaro não vê os atletas como seres isolados, cada um lutando por si, mas os compara aos deuses, o padrão para toda realização humana. Os homens não imitavam os deuses como seres distantes, mas os entendiam como correspondentes ao potencial da sua própria natureza essencialmente divina.

O mito de Marduk e Tiamat parece ter influenciado o povo de Canaã, que contava uma história semelhante sobre "Baal-Habab", o deus da tempestade e da fertilidade, muitas vezes citado na Bíblia.

Continua...


Fontes e bibliografia:
ARMSTRONG, Karen. "A History of God", 1993, The 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam" - "Uma História de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo", São Paulo: Companhia das Letras, 1992.



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