quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A Era Axial


Renascimento da humanidade

Uma sensação de mal estar, um sentido de estar incompleto, inacabado, parece ter tomado conta do mundo, afligindo pessoas em regiões bastante distantes umas das outras, em todo o mundo civilizado. Um crescente número de pensadores passara a achar que as práticas espirituais de seus ancestrais não mais funcionavam para as pessoas, e um impressionante batalhão de gênios proféticos e filosóficos fazia esforços supremos para encontrar uma solução. Alguns historiadores chamam esse período, que se estendeu de cerca de 800 a 200 aC, de "Era Axial" - termo cunhado pelo filósofo alemão Karl Jaspers, e que tem a ver com “eixo” - porque se revelou fundamental para a humanidade: era como se a mente do mundo passasse a “entrar nos eixos”, por algum motivo que não podemos explicar, ao mesmo tempo em todas as partes do mundo. Princípios forjados e compreensões adquiridas nessa era continuam a alimentar homens e mulheres até hoje.

Sidarta Gautama iria se tornar um dos mais importantes e típicos luminares da Era Axial, junto com os grandes profetas hebraicos dos séculos VIII, VII, VI; Confúcio e Lao-tsé, que reformaram as tradições religiosas da China nos séculos VI e V; o sábio iraniano Zarathustra, do século VI; e Sócrates e Platão, que exortaram os gregos a questionarem até mesmo as verdades que pareciam evidentes por si mesmas. As pessoas que participaram dessa grande transformação estavam convencidas de que se achavam no limiar de uma nova era, e que nada jamais voltaria a ser a mesma coisa de antes.

A era Axial assinala o início da humanidade como hoje a conhecemos. Durante esse período, homens e mulheres tomaram consciência, de uma forma (até onde sabemos) sem precedentes, de sua existência, natureza e limitações. A sensação de absoluta impotência num mundo cruel levou-os a buscarem as mais altas metas e uma realidade absoluta nas profundezas de seu próprio ser. Os grandes sábios dessa época ensinaram os seres humanos a enfrentar a miséria da vida, transcender suas fraquezas e viver em paz no meio deste mundo imperfeito. Os novos sistemas religiosos que surgiram nesse período - taoísmo e confucionismo na China, budismo e hinduísmo na Índia, monoteísmo no Irã e Oriente Médio, e racionalismo grego na Europa - partilhavam, todos, características fundamentais sob suas óbvias diferenças. Só participando dessa transformação em massa foi que os vários povos do mundo puderam progredir e entrar na marcha da história. Contudo, apesar de sua grande importância, a Era Axial permanece misteriosa. Não sabemos o que a causou, nem por que deitou raízes principalmente em certas áreas nucleares: China, Índia, Irã e Mediterrâneo oriental. O que levou chineses, iranianos, indianos, judeus e gregos a sentirem esses novos horizontes e embarcarem numa busca sem precedentes por Luz e Salvação? Antes disso, babilônios e egípcios haviam criado grandes civilizações, mas não desenvolveram uma ideologia axial nessa altura, e só depois participaram do novo etos universal (conjunto das coisas que distinguem os povos, nomeadamente no que diz respeito às suas atitudes, hábitos e crenças) – principalmente no islã e no cristianismo, sob certo ponto de vista reafirmações do impulso axial original.

Mas nos países axiais, uns poucos homens sentiram novas possibilidades e desligaram-se das antigas tradições. Buscaram a mudança no recesso de seus seres, na maior interioridade em suas vidas espirituais, e tentaram fundir-se com uma Realidade que transcendia as condições e categorias mundanas normais. Após essa era fundamental, sentiu-se que só indo além de seus limites podiam os seres humanos tornar-se plenamente eles mesmos.


A História humana registrada só começa por volta de 3000 aC. Até essa época, temos pouca prova documental da maneira como os seres humanos viviam e organizavam suas sociedades. Mas sempre se tentou imaginar como foram os 20 mil anos de pré-história, e enraizar nela sua própria experiência. Em todo o mundo, em toda cultura, esses dias antigos foram descritos na mitologia, que não tem fundamento histórico, mas fala de paraísos perdidos e catástrofes primais. Também é extremamente curioso observar que todas as mitologias antigas narram histórias perfeitamente similares a respeito das origens: todas falam na glória original da humanidade, um período de total bem aventurança e depois uma queda para o nosso atual estado de coisas. Na “Era de Ouro”, dizem, os deuses andavam na terra junto com os seres humanos. A história do Jardim do Éden, contada no Gênesis, o paraíso perdido do Ocidente, era típica: um dia, não havia divisão entre a humanidade e o divino: Deus passeava no jardim, na brisa do entardecer. Tampouco eram os seres humanos divididos uns dos outros. Adão e Eva viviam em harmonia, ignorando sua diferença sexual e a distinção entre bem e mal. Trata-se de uma unidade impossível de se imaginar em nossa existência mais fragmentada, mas em quase toda cultura o mito dessa Concórdia ou Comunhão primal mostrava que os seres humanos continuavam a ansiar por uma paz e inteireza que julgavam ser o estado perfeito da humanidade. Eles sentiram o alvorecer como uma dolorosa perda da Graça divina. A Bíblia hebraica chama esse estado de inteireza e completude de Shalom; Gautama falava em Nirvana e deixou sua casa para encontrá-lo. Todos as grandes tradições acreditavam que os seres humanos haviam vivido nessa paz e plenitude antes, mas tinham esquecido o Caminho que a elas reconduziria. Nascia o conceito do que hoje chamamos “Religião” – era preciso religar-se à nossa condição de unos com a Fonte.


Fontes e bibliografia:
Profº Miguel Castelo Branco;
"Buda", 2002 - Karen Armstrong (Editora Objetiva).


A seguir: Budismo.



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quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O Mahavira

Templo jaina - Índia

O termo "Mahavira"* é um título dado a Nataputra Vardhamana, o reformador do jainismo e o último dos vinte e quatro "Tirthankaras" ('Construtores do Caminho'). Mahavira é também conhecido com os nomes de Vardhamana (o que sempre avança), e Sanmati. Segundo a tradição jaina ele nasceu em 599 aC em Kshatriyakundagrama ou Kundapura, perto de Vaishali, na Índia, e viveu até o ano de 527 aC, em Pavapuri.

Mahavira pertencia à casta guerreira (kshatriya), sendo o seu pai o rei Siddharta, líder de um grande clã, e a sua mãe Devananda, que pertenceria à casta dos brâmanes - outras tradições apresentam outros nomes para a sua mãe, como Trishala, Videhadinna ou Priyakarini, e colocam-na na casta guerreira. - Seus pais eram ambos seguidores do grande Parshva. Devananda era a irmã do rei Chetaka de Vaishali, a capital de uma federação onde o Jainismo de Parshva era popular.

Com a prosperidade do reino do seu pai, Mahavira cresceu num ambiente de luxo, entre riquezas e fartura principescas. Pela sua coragem e auto controle nas circunstâncias mais difíceis, foi-lhe dado o título de Mahavira, que significa "grande herói". Ele mostrou a sua coragem logo em criança, realizando ainda pequeno feitos como montar um elefante pelo dorso e agarrar uma imensa serpente e atirá-la para longe. Recebeu, provavelmente, a educação de um aristocrata em filosofia, literatura, ciências militares e administrativas, bem como nas artes.

Mahavira casou com a princesa Yasoda e tiveram uma filha, Anojja. Quando ele tinha por volta de 28 anos, morreram os seus pais. Quis renunciar ao mundo; mas, para agradar ao irmão mais velho, concordou em viver em casa durante mais dois anos, durante os quais, praticou rigorosa auto disciplina. No último ano de sua estada em sua casa, distribuiu todos os seus bens e praticou a caridade todos os dias.

Aproximadamente aos 30 anos de idade, abandonou de vez todas as suas posses para partir em busca da Verdade. Renunciou a toda sua riqueza, propriedades, mulher, filho, parentes e prazeres. No jardim da cidade de Kundapura, aos pés de uma árvore ashoka, sem mais ninguém estar presente, e depois de permanecer dois dias sem água, tirou todas as roupas, cortou seu cabelo e colocou uma simples peça de tecido sobre o ombro. Como se percebe, desde o nome do seu pai, tudo em sua história se assemelha aos acontecimentos da vida do Buda histórico, Sidarta Gautama (o Buda Sakiamuni), e o mais impressionante é que os dois foram contemporâneos: viveram ambos numa época em que as práticas religiosas tradicionais começavam a entrar em crise. Em particular, o sacrifício de animais e o sistema de castas eram postos em cheque, e tanto Mahavira quanto o Buda os rejeitaram.

Logo após deixar a sua vida confortável para trás, o Mahavira se entregou à rigorosas práticas ascéticas na esperança de alcançar a iluminação. Durante um ano usou roupa, mas depois passou a andar nú, como sinal de absoulta renúncia dos valores mundanos. Deixou que insetos o atacassem; sofreu ataques físicos e verbais; dormiu em locais inóspitos; praticou jejuns extremos; num período total de doze anos. Teve também particular cuidado em não fazer mal a qualquer forma de vida, desenvolvendo assim a teoria de "Ahimsa" ('Não-Violência'). É por isso que até hoje alguns monjes jainas (os da ordem svetambra) usam uma máscara de tecido usada sobre a boca ('mukhavastrika'), para não ingerirem, involuntariamente, pequenos insetos. Isso seria causar a morte de um ser vivo, o que geraria karma ruim.

Mahavira fez votos de negligenciar o seu corpo e sofrer sem resistência a todas as dificuldades, tanto as espirituais quanto as mundanas. Já antes de se casar, havia obtido os três primeiros níveis do conhecimento - conhecimento dos sentidos, conhecimento dos estudos e conhecimento da intuição - e diz-se que atingiu também o quarto nível do conhecimento, o qual inclui os movimentos psicológicos de todos os seres senscientes (que dispõe de consciência).

Mahavira tornou-se um sem-teto. Em certa ocasião, um pedinte brâmane, pediu-lhe uma esmola; ele, que já não tinha mais nada, deu-lhe metade da vestimenta do seu ombro. Treze meses depois, tinha oferecido tudo o que restava da sua roupa.

Após alguns meses de contemplação, Mahavira foi para um ashram em Moraga, onde foi convidado pelo abade, que fora amigo do seu pai, a permanecer ali durante os quatro meses da estação das chuvas. Ficou numa cabana com uma cobertura de palha. O verão tinha sido tão quente que a erva da floresta tinha desaparecido, e o gado começou a comer as cabanas de palha dos ascetas. Os outros ascetas espantaram o gado, mas Mahavira deixou os animais comerem a cobertura da sua cabana. Os ascetas então queixaram-se ao abade e Mahavira decidiu abandonar o ashram, passando a estação das chuvas na vila de Ashtika. Refletindo nessa experiência, resolveu seguir a rígida disciplina de nunca viver na casa de pessoas desagradáveis, mantendo o silêncio, comendo na sua mão como se fosse um prato e não mostrando delicadeza ou prestando honra aos donos das casas.

Mahavira permanecia habitualmente com o corpo rígido como uma estátua (kayostarga). Simultaneamente, praticava a meditação e austeridades severas. No verão meditava ao sol ou caminhava nos campos ardentes pelo calor extremo, enquanto no inverno meditava nu ao ar livre. Caminhava devagar, mantendo cuidadosamente os olhos no chão, para evitar pisar qualquer inseto. Vivia em casas abandonadas, crematórios, jardins ou qualquer lugar isolado.

A pouca comida, conseguia-a mendigando. Se via outro pedinte, animal ou ave esperando pela comida de uma casa, seguia silenciosamente para a casa seguinte. Em determinada ocasião, jejuou por 30 dias consecutivos. Durante longo período, sua vida foi cheia de aventuras, e o sofrimento era uma constante, mas ele manteve sua postura firme e meditativa.

Após o décimo segundo ano procurando a mais alta iluminação, Mahavira meditou durante seis meses sentado em quietude, mas falhou. Fazia penitência num cemitério, quando Rudra e a sua mulher o interromperam. Finalmente, no décimo terceiro ano de uma vida ascética, enquanto meditava e após dois dias e meio de jejum de água, Mahavira obteve o nirvana e a mais alta consciência, chamada "Kevala", ou "Sabedoria Absoluta". Diz a tradição que a primeira mensagem de Mahavira após a sua iluminação está registada no texto "Majjhima Nikaya":

"Eu sou toda a Sabedoria e todo o visível,
possuidor de um conhecimento infinito.
Tanto esteja a caminhar ou quieto,
tanto esteja a dormir, como acordado,
o supremo conhecimento e a intuição
estão presentes em mim – constante e continuamente.

Existem, oh Nirgranthas, alguns atos pecaminosos
vividos no vosso passado
os quais devem agora abandonar,
por esta forma extrema de austeridade.
Agora e aqui, vão viver reduzidos
a observar os vossos atos, discursos e pensamentos.
Isso irá trabalhar como não produção de karma para o futuro.

Então, pela exaustão da força dos atos passados
através da penitência e da não acumulação de novos atos,
podem estar certos da paragem da maldição futura
e do renascer a partir de tal parar,
da destruição dos efeitos kármicos,
daí, da destruição da dor,
daí, da destruição dos sentimentos mentais,
e daí, da completa libertação
de todos os tipos de dor."


Um dia apareceram dois monarcas e nove escolásticos, e argumentaram com Mahavira - acabaram convertidos. A tradição Jaina diz que estes 11 trouxeram 4.400 discípulos para a nova fé. Aos poucos, Mahavira começou a converter toda a população com os seus discursos, incluindo os nobres daquela vasta região.

Depois disso, o Mahavira dedicou todos os anos restantes da sua vida a ensinar sua doutrina.


Doutrina

"Ahimsa" - Não Violência - não causar mal ou sofrimento a qualquer ser (mesmo vermes ou insetos);

"Satya" - Verdade - evitar a mentira;

"Asteya" - Honradez, Honestidade - não se apropriar do que não foi dado;

"Brahmacharya" - Castidade - abster-se das relações sexuais;

"Aparigraha" - Desapego - não se apegar às posses materiais, não ter apego pelas coisas mundanas.

Mahavira viveu toda sua vida imerso na autocontemplação. Ele soube que os prazeres do mundo são transitórios, e que eles reforçam as letras do karma. Ele soube que a renúncia conduziria ao alcance da eterna bem-aventurança. Mahavira faleceu aos 72 anos. O seu primeiro discípulo, Indrabhuti Gautama, morreu ao amanhecer do dia seguinte. Seus seguidores posteriormente organizado a religião jaina nos seus moldes actuais. - "Jaina" vem de "jina", que significa vitorioso ou conquistador.

As idéias metafísicas essenciais do Jainismo, estabelecidas por Mahavira, são consituídas por nove princípios cardinais:

# O Universo está dividido no que é vivo e consciente (jiva) e na matéria inerte (ajiva).

# As Jivas (almas) são tanto apanhadas pelo karma (ação) na roda de renascimentos (samsara) ou libertadas (mukta) e aperfeiçoadas (siddha). Apesar do seu número ser infinito, as jivas são individuais e cada uma contêm um potencial infinito de consciência, poder e benção.

# "Ajiva", a matéria, é feita de partículas eternas em tempo e espaço que podem ser alterados e parados.

# "Ashrava" - "jiva", a alma, é atraída para os objetos dos sentidos pelo princípio de Ashrava, que leva ao sofrimento (bandha) da alma pela ação do karma.

# "Punya", a virtude;

# "Papa", o vício;

# "Samvara', a alma evita "ashrava" (o 'influxo kármico') pela contemplação e a auto disciplina da mente, fala e corpo. Isto leva, eventualmente, a

# "Nirjara", a eliminação do karma;

# "Moksha", a libertação, é obtida. Na morte da última vida, o "Nirvana" (literalmente “ser extinto”) explica o fim da existência mundana da alma, a qual, então, se eleva ao mais alto Céu.


“Todos os objetos do mundo são passageiros como o mundo. Onde pode alguém conseguir a felicidade neste mundo, o qual é a morada da doença, do sofrimento, da dor e da morte?” - O Mahavira


*Nota: todos os termos em língua estrangeira deste post provém do sânscrito.


Fontes e bibliografia:
"Lord Mahavir and Jain Religion" - Pravin K. Shah
Profº Vinay Lal;
Grupo Shunya;
Dharmanet.Com;
Wikipedia revisado.


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Jainismo

"Não, eu não sou Buda. Sou Mahavira!"

O jainismo ou "jinismo" é uma das religiões mais antigas da Índia. Alguns historiadores consideram que a sua origem seja anterior a do Bramanismo, embora seja mais provável que a sua forma atual tenha surgido no século V aC, resultado da ação religiosa de Nataputra Vardhamana, conhecido como Mahavira, o “Grande Herói”. Vista durante algum tempo pelos investigadores ocidentais como uma seita do hinduísmo ou uma heresia do budismo, devido à partilha de elementos comuns com estas religiões, ficou comprovado entretanto que o jainismo é um fenômeno original.

Ao contrário do budismo, o jainismo nunca teve um espírito missionário, tendo permanecido na Índia, onde os jainas constituem hoje cerca de quatro milhões de crentes. Pequenas comunidades jainas existem também na América do Norte e na Europa, em resultado de movimentos migratórios.

Sua visão básica é dualista: a matéria e a alma (ou 'essência vital', que no jainismo é chamada 'jiva') são de natureza distinta, e durante sua vida o ser vivente (seja humano ou animal) "tinge" sua alma conforme suas ações, boas ou más. Para se purificar, essa religião propõe um ascetismo extremo e a prática da Doutrina da Não-Violência = "Ahimsa".

Segundo historiadores da religião, o jainismo estabeleceu-se na Índia em meados do primeiro milênio aC. O seu fundador foi Mahavira, e existem duas propostas aceitas como possíveis para o período em que viveu: 599 a 527 aC (a data tradicional, adotada pelos jainistas) ou 540 a 470 aC (segundo grupos acadêmicos). Mahavira nasceu perto de Patna, onde é hoje o estado do Bihar. Tendo sido um contemporâneo do Buda, pregou na mesma região geográfica que este, embora não conste que estes dois buscadores tenham alguma vez se encontrado. Mahavira pertencia à casta dos guerreiros ('kshatriya'): casou e viveu no luxo, até que por volta dos trinta anos tornou-se um mendigo errante. Segundo a tradição, entregou-se a longos processos ascéticos até obter a Iluminação, tendo consagrado os restantes trinta ou quarenta anos da sua vida à pregação da sua doutrina. Faleceu em Pavapuri, no Bihar, que é desde então um dos principais centros da peregrinação jaina. Como se vê, a história de Mahavira e a do Buda são praticamente idênticas.

De acordo com os jainas, a sua religião é eterna, tendo sido a doutrina revelada ao longo de várias eras pelos 'Tirthankaras', palavra sânscrita que significa "Fazedores de Vau", ou seja, alguém que ensinou o Caminho. Os Tirthankaras foram almas nascidas como seres humanos que alcançaram a Libertação (Moksha) do ciclo dos renascimentos através da renúncia e que transmitiram os seus ensinamentos aos homens. Segundo o jaininsmo, até a presente Era existiram 24 Tirthankaras - o último desses Tirthankaras foi o Mahavira, que os jainas não consideram como o "fundador" do jainismo, mas sim que ele lhe tenha dado sua forma atual. O 23º Tirthankara foi Parshva, que os historiadores consideram ter sido provavelmente uma figura histórica que viveu cerca de três séculos antes do Mahavira. Os jainas acreditam que Parshva pregou os 4 grandes princípios do jainismo, a saber: Não-Violência ('Ahimsa'), evitar a mentira, não se apropriar do que não foi dado e não se apegar às posses materiais; o Mahavira acrescentou a estes mais um princípio: o da castidade.


Divisões internas

Os jainas encontram-se divididos em dois grupos principais: os digambara ('Vestidos de Espaço' ou 'Cobertos pelo Céu') e os svetambara (ou 'shvetambara', 'Vestidos de branco'). Cada um destes grupos encontra-se por sua vez dividido em vários subgrupos. A maioria dos jainas pertencem ao grupo Svetambara.

A origem destes dois grupos situa-se no século I dC (ou III dC, segundo alguns autores) e deve-se às disputas em torno dos textos que devem constituir as escrituras do jainismo. Os svetambara consideram que as suas escrituras estão mais próximas dos ensinamentos originais do Mahavira, enquanto que os digambara rejeitam uma parte considerável dessas escrituras. Os digambara consideram igualmente que a renúncia pregada pelo Mahavira implica para os monges a nudez total e que as mulheres devem primeiro renascer como homens para poderem atingir a libertação.

Geograficamente, os digambara concentram-se no sudoeste da Índia e os Svetambara ao noroeste (estados do Gujarate, Rajastão e Madhya Pradesh). O estátuário dos dois grupos são também diferentes: os Tirthankaras dos svetambara possuem roupas e uma decoração mais rica, enquanto que as dos digambara estão sempre nuas: estas diferenças fazem com que um adepto dos digambara não possa praticar o culto num templo svetambara.


Doutrinas

Deuses - Apesar de prestarem culto a diversos deuses e deusas, que crêem atuar no mundo físico, os jainas não crêem num Ser superior nem adotam a idéia do Deus Uno.

O Tempo - Os jainas consideram que o Tempo é infinito e cíclico. Ele é visto como uma grande roda dividida em duas partes idênticas: uma realiza um movimento ascendente ('Utsarpini'), enquanto que a outra um movimento descendente ('Avasarpini'). Cada uma destas partes divide-se em seis Eras ('Ara'). Durante o período ascendente os seres humanos progridem ao nível do saber, estatura e felicidade, enquanto que o período descendente caracteriza-se pela degradação do mundo, pelo esquecimento da religião e pela perda de qualidade de vida pelos humanos.

Segundo os jainas, vivemos atualmente num período de movimento descendente, numa Era de infelicidade ('Dukham Kal'), que começou há 2 500 anos e que durará 21 mil anos.

O Universo e os "Cinco Mundos" - Segundo o jainismo, o Universo divide-se em cinco mundos, sendo cada um deles habitado por determinado tipo de seres. O Universo é eterno, e crêem que no topo do Universo está a "Morada Suprema" ('Siddhashila'), que é o local onde habitam as almas que alcançaram a libertação (estas almas são denominadas 'Siddhas'). Abaixo encontram-se 'Trinta Céus', habitados por seres celestiais, alguns dos quais caminham para a morada suprema.

O "Mundo Médio" ou 'Terra Média' ('Madhyaloka') - nada a ver com Tolkien, a não ser que talvez ele tenha vindo buscar no jainismo a idéia do nome - inclui vários continentes separados por mares. No centro deste mundo encontra-se o continente 'Jambudvipa', considerado o único continente no qual as almas podem alcançar a libertação. Os seres humanos habitam este continente, bem como um segundo continente ao lado deste e parte do terceiro continente.

O "Mundo Inferior" ('Adholoka') consiste em sete infernos, onde os seres são atormentados por demônios e onde se atormentam uns aos outros. Abaixo do sétimo inferno encontra-se a base do Universo ('Nigoda'), habitada por inúmeras formas inferiores de vida.

"Karma" - À semelhança do hinduísmo, o jainismo partilha da crença no karma, embora de uma forma diferente. O karma no jainismo não é apenas um processo em que determinadas ações produzem reações, mas também uma substância física que se agrega às almas. As 'partículas' de karma existiriam no Universo e associariam-se à uma alma devido às suas ações (por exemplo, quando uma alma mente, rouba ou mata, provoca a agregação de karma negativo na sua alma). A quantidade e qualidade destas partículas determinam a existência que a alma terá, a sua felicidade ou infelicidade. Só é possível à uma alma alcançar a Libertação quando desta se retirarem todas as partículas de karma. O processo que permite a libertação das partículas de karma de uma alma denomina-se 'nirjara' e inclui práticas como o jejum, o retiro para locais isolados, a mortificação do corpo e a meditação.

Os doze "Anuprekshas" - a "Matéria de Pensamento Profundo" - das escrituras Jainistas:

1. Todas as coisas mundanas são temporárias.
2. Apenas a alma é o único refúgio
3. Este mundo é sem começo e deformado.
4. Nada ajuda a alma além de si mesma.
5. Corpo e mente são, essencialmente, separados da alma.
6. A alma é essencialmente pura, e o corpo e a mente são impuros.
7. O cativeiro da alma é devido a influência do karma sobre ela.
8. Todos os seres devem parar a influência do karma.
9. A liberação é alcançada quando se está absolutamente livre do karma.
10. A alma liberada preenche o espaço.
11. Neste mundo, ter um nascimento como ser humano e meditar na natureza da alma é a maior bênção.
12. Ter as três jóias comum descritas pelo onisciente é apenas moralidade.


Formas de vida religiosa jainistas

Monges e monjas - O jainismo considera a vida monástica como o ideal de vida dos seres humanos. Entre os svemtambara, a entrada na vida monástica é autorizada aos dois sexos a partir dos setes anos, mas realiza-se em geral numa idade mais avançada. O noviço deve abandonar todos os seus bens; por altura da sua ordenação ('diksa') sua cabeça é raspada e ele toma os cincos votos, que segue numa versão mais rigorosa do que a dos leigos ('mahavrata').

Os monges jainas levam uma vida itinerante, com exceção da época das monções, altura em que se recolhem numa determinada localidade. Dependem para a sua alimentação da caridade fornecida pelos leigos jainas, a quem oferecem em troca assistência espiritual.

Os monges do ramo svetambara podem ter apenas pequenas coisas, como uma fina veste branca, uma tijela onde recebem os alimentos dos leigos e uma máscara de tecido usada sobre a boca ('mukhavastrika'), cujo objetivo é evitar a ingestão involuntária de pequenos insetos. Os monges digambara interpretam o preceito do desapego de uma forma bastante rigorosa e por esta razão não usam roupas; as monjas deste ramo usam uma veste branca. Os monges digambara não possuem uma tijela e usam a mãos como recipiente dos alimentos. Os monges svetambara costumam se deslocar em pequenos grupos de cinco ou seis monges, enquanto que os digambara geralmente viajam sozinhos.

Todos os monges devem seguir as três regras, chamadas "guptis", que evitam a conduta incorreta: Ter cuidado com os pensamentos, com as palavras e com as ações.

Entre os svetambara o número de monjas ultrapassa o de monges. Isso porque as monjas digambara aceitam a doutrina que afirma que para se avançar no Caminho espiritual é necessário nascer com um corpo masculino.

Leigos - Os jainas que não são monges devem observar oito regras de comportamento e devem tomar doze votos. As oitos regras de comportamento variam, mas em geral incluem não comer durante a noite, não comer carne, não beber vinho e não comer certos vegetais nos quais se acredita que vivem determinados seres. Os doze votos podem ser divididos em três classes:

1) Anuvratas - são os cinco votos principais: abster-se de actos violentos, não mentir, não roubar, não cobiçar o parceiro de outra pessoa e limitar as possessões pessoais;

2) Gunavratas - são três votos que reforçam os cincos votos principais: restringir as atividades pessoais a uma área concreta ('digvrata'), restringir práticas que proporcionam prazer ('bhogopabhogavrata'), evitar atos que causem sofrimento ('anarthadandavrata');

3) Siksavratas - são quatro votos de disciplina espiritual: meditar, limitar determinadas atividades a certos momentos, adotar a vida de um monge por um dia, fazer donativos aos monges e/ou aos pobres.


Formas de culto

Gomateswara

Uma das principais formas de culto dos jainas leigos é prestar homenagem às estátuas dos Tirthankaras. Os jainas lavam as estátuas e dedicam-lhes oferendas, como mel, flores, arroz, etc. Alguns grupos jainas, como os "sthanakavasis" e os "terapanthis", são contra o culto de imagens. As estátuas podem ser adoradas nos templos ou então em pequenos santuários existentes nas casas. São representadas em posição de meditação, sentadas ou em pé.

Não é possível estabelecer qualquer forma de contato com os Tirthankaras através desta forma de culto, uma vez que estes, tendo alcançado a libertação, ficam fora do contato humano. Contudo, durante a Idade Média cada Tirthankara foi associado a uma deusa protectora, em relação às quais se desenvolveram formas particulares de devoção. As deusas mais importantes são "Ambika" (associada ao 22º Tirthankara, Arishtanemi), "Padmavati" (associada a Parshva), "Lakshmi" e "Sarasvati".

As orações jainas fazem referência aos grandes atos dos Tirthankaras e aos ensinamentos do Mahavira, sendo ditas num antigo dialeto do Bihar, o "ardha magadhi". A principal oração é o "Namaskara Sutra", através do qual o jaina presta homenagem às qualidades dos cinco grandes seres do jainismo. O ato de fazer doações para a construção de templos é também considerado uma forma de culto, assim como a prática de peregrinações.


Festivais

# Mahavira Jayanti - decorre em Março ou Abril e celebra a data do nascimento do Mahavira. Neste dia estátuas do Mahavira são levadas em procissões pelas ruas e os jainas reúnem-se nos templos para ouvir a leitura dos seus ensinamentos.

# Paryushana: durante o mês de Bhadrapada (Agosto-Setembro) os membros do ramo Svetambara do jainismo celebram um dos seus festivais mais importantes, Paryushana. Este festival está dedicado ao perdão e consiste na prática do jejum durante oito dias. No último dia do festival (Samvatsari) os jainas pedem perdão uns aos outros por ofensas que possam ter causado; aqueles que conseguiram jejuar durante os oito dias seguidos são levados para os templos em procissão. O festival equivalente na tradição Digambara denomina-se

#Dashalakshanaparvan, onde além da prática do jejum, é lido nos templos um importante texto, o Tattvartha-sutra.

#Divali (Festa das Luzes) - celebração comum a toda a Índia, é para os jainas a comemoração da altura em que o Mahavira deu os seus últimos ensinamentos e alcançou a libertação. Ocorre no mês de Kaartika, que corresponde no calendário gregoriano a Outubro-Novembro.

#Kartik Purnima - ocorre no dia de lua cheia do mês de Kaartika. Após terem permanecido numa determinada localidade durante os meses da monção, os monges e monjas jainas regressam à vida errante, sendo por vezes acompanhados por leigos no percurso que fazem para outro local. Neste dia muitos jainas realizam a peregrinação aos templos de Palitana, no estado indiano do Gujarate.

#Mastakabhisheka - Cada doze anos os jainas (principalmente os do ramo Digambara) reúnem-se no santuário de Shravana Belgola no estado de Karnataka, onde se encontra uma estátua de dezassete metros de Bahubali, que é alvo de libações com água, mel, leite, flores, preparados de ervas e especiarias.


Fontes:
Profº Vinay Lal;
Wikipedia revisado;
Syami Krishnapriyananda Saraswati (Sociedade Internacional Gita do Brasil).


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quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Os Profetas - conclusão

Da semente esmagada brota a nova Vida


Como estavam junto aos rios da Babilônia, alguns dos exilados inevitavelmente achavam que não podiam praticar sua religião fora da Terra Prometida. Os deuses pagãos sempre tinham sido territoriais, e para alguns parecia impossível entoar cânticos a Javé num país estrangeiro. Um novo profeta, porém, pregava a calma. Nada sabemos dele, e isso pode ser significativo, porque seus oráculos e salmos não dão sinal de uma luta pessoal, como as travadas pelos sus antecessores. Como suas obras foram depois acrescentadas aos oráculos de Isaías, ele é em geral chamado de o “Segundo Isaías”. No exílio, alguns dos judeus teriam se passado para a adoração dos antigos deuses da Babilônia, mas outros foram levados a uma nova consciência religiosa.

O Templo de Javé estava em ruínas; haviam sido destruídos os velhos santuários em Beth-El e Hebron. Na Babilônia, os judeus não podiam tomar parte em liturgias que haviam sido fudamentais para sua vida religiosa na pátria-mãe. Agora só tinham Javé. O Segundo Isaías deu mais esse passo e declarou que Javé não era só o maior dos deuses. Ele era o Único Deus.

O Primeiro Isaías fizera da História um aviso divino; após a catástrofe, em seu Livro de Consolação, o Segundo Isaías traz nova esperança para o futuro. Se Javé já resgatara Israel uma vez, então podia fazê-lo de novo. Ele planejava as questões da História; a seus olhos, todos os gentios (estrangeiros) não passavam de uma gota d’água num balde. O segundo Isaías imaginava as velhas divindades da Babilônia sendo amontoadas numa carroça e afastando-se aos trancos na direção do poente. Acabara o tempo deles: “Porventura não sou eu Javé?” perguntam repetidas vezes seus escritos, “e não há outro Deus senão eu”.

“E que antes de mim nenhum deus se formou,
e depois de mim nenhum haverá.
Eu, eu sou Javé,
e fora de mim não há Salvador.”
- Isaías, 43:10-12

Este Segundo Isaías não perdeu tempo denuciando os deuses dos goym, que, desde a catástrofe, podiam estar sendo vistos como vitoriosos. Calmamente assumiu que Javé – não Marduk nem Baal – realizara os grandes feitos míticos que haviam criado o mundo. Pela primeira vez, os israelitas interessavam-se a sério pelo papel de Javé na criação, talvez por causa do renovado contato com os mitos cosmológicos da Babilônia. Não tentavam, por certo, uma versão científica das origens físicas do Universo, mas buscavam encontrar conforto no duro mundo do presente. Se o seu Deus derrotara os monstros do caos nos tempos primordiais, seria simples redimir os israelitas exilados. Vendo a semelhança entre o mito do Êxodo e as narrativas pagãs da vitória sobre o caos aquático no começo dos tempos, o Segundo Isaías exortou seu povo a esperar com confiança uma nova demonstração da força divina. Aqui, por exemplo, ele se refere à vitória de Baal sobre Lotan, o monstro marinho da mitologia da criação cananéia, que também se chamava Rahab, o Crocodilo (tannïn) e o Abismo (tehõn):

"Despertai, despertai! Vesti-vos de força.
Braço de Javé,
despertai, como antes,
em tempos de gerações há muito passadas.
Não dividistes Rahab em dois,
e varaste o Dragão (tannïn)?
Não secaste o mar,
as águas do grande Abismo (tehõn)
para fazer do leito do mar uma estrada
por onde os redimidos passassem?”
- Isaías, 51:9-10

Javé absorvera afinal seus “rivais” na imaginação religiosa de Israel. No exílio, a atração do paganismo finalmente perdera sua força, e nascera a religião do judaísmo. Numa época em que se poderia, razoavelmente, esperar que o culto de Javé perecesse, ele se tornou o meio que possibilitava às pessoas encontrar esperança em circunstâncias impossíveis. Javé, portanto, tornara-se o Único Deus.

Não houve tentativa de justificar filosoficamente essas mudanças. Como sempre, a nova teologia vencera não porque pudesse ser racionalmente demonstrada, mas porque era eficaz na prevenção ao desespero e inspirava esperança. Deslocados e afastados como estavam, os judeus não mais achavam estranha e perturbadora a descontinuidade do culto de Javé. Esta, na realidade, devia falar profundamente à condição deles. Contudo, o que permanece intrigante é que continuva não havendo nada de "aconchegante" na imagem de Deus do Segundo Isaías. Ela continuava, como sempre esteve, fora do alcance da mente humana:

"Porque Meus Pensamentos não são os vossos pensamentos,
mem os vossos caminhos são os Meus Caminhos.
Porque, assim como os Céus são mais altos que a Terra,
assim os Meus Caminhos mais altos que os vossos caminhos,
e os Meus Pensamentos mais altos que os Vossos Pensamentos."
- Isaías, 55:8-9

A realidade de Deus está além do alcance das palavras e conceitos. Tampouco iria Javé fazer sempre o que seu povo esperava. Num trecho inexplicável, de particular pungência hoje, o profeta aspira por um tempo em que Egito e Assíria também se tornassem o povo de Javé, juntamente com Israel. Javé diria:

“Bendito seja o povo do Egito e Assíria, a obra das Minhas Mãos, e Israel a Minha herança.” - Isaías, 19:24,25

A idéia de "O Senhor dos Exércitos" de Israel tornara-se o Símbolo de uma Realidade Transcendente que fazia as tacanhas interpretações da eleição do Israel como único povo de Deus parecerem mesquinhas e inadequadas. Mas as concepções de Deus do povo judeu permaneceram, como sempre foram, interpretações fiéis do que eles compreendiam da Verdade última, independentes do que gostariam de acreditar. Por mais que aquilo que entendessem da Vontade de Deus contrariasse suas expectativas e anseios (Jonas chegou a tentar fugir, literalmente), os profetas judaicos nunca renegaram a sua missão. De todas as religiões da antiguidade, a doutrina de Israel era a única que não aludia a algum "deus-joguete" em mãos humanas, passível de ser manipulado mediante sacrifícios e rituais. Este Deus não era moldável, mas moldava seus devotos: exigia justiça, serviço em prol dos sofredores e Amor incondicional. Se hoje esses princípios nos parecem comuns, é porque geralmente não conhecemos e tendemos a não levar em consideração o contexto histórico em que surgiram: uma Era de dureza e crueldade absolutas, em que apenas a força garantia conquistas, e as relações humanas eram puramente interesseiras. Os elevados ideais trazidos pelos profetas (os mesmos ideais que as sociedades modernas perseguem até hoje), surgiram na infância da humanidade, quando "religião" era sinônimo de sangue derramado, orgias sexuais e a adoração dos animais e dos elementos.

Os demais povos da região do "Centro da Terra" da Antiguidade nunca deixaram de se impressionar com as gritantes diferenças entre as concepções religiosas dos israelitas e as suas próprias. Quanto a nós, provavelmente nunca entenderemos a origem dos ideais que levaram os descendentes de Abraão a mudar, para sempre, o "Espírito da Terra".


Fontes e bibliografia:
Profº Shigeyuki Nakanose;
Profª Enilda de Paula Pedro;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.



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Os Profetas #5

Visões - possíveis significações e mistérios

Ainda não havia nada muito parecido com o que os hindus chamavam de "Atman" (do sânscrito 'sopro de vida', o princípio divino imediato) no culto de Javé. Deus era vivenciado como uma Realidade externa, que transcendia completamente a matéria. Mas era preciso que essa idéia de Deus fosse humanizada de algum modo, para que parecesse menos distante. A situação política deteriorava-se: os babilônios invadiram Judá e levaram o rei e a primeira leva de israelitas para o exílio; por fim, a própria Jerusalém foi sitiada. À medida em que pioravam as condições, Jeremias continuava a tradição de atribuir emoções humanas a Javé; ele descreve Deus a “lamentar” seu próprio desabrigo, aflição e desolação; descreve Javé sentindo-se tão desorientado, ofendido e abandonado quanto seu povo. Em seus escritos, Deus estava tão paralisado quanto o próprio Jeremias.

A raiva que Jeremias sentia tomar conta de seu coração, ele atribui a Javé. Quando os profetas pensavam no homem, logo pensavam também em Deus, cuja presença, acreditavam, dependia de certa forma do homem para se manifestar no mundo.

Enquanto o inimigo estava às portas, Jeremias esbravejou com seu povo em nome de Deus, embora, diante de Deus, implorasse por eles. Assim que Jerusalém foi conquistada pelos babilônios em 587 aC, os oráculos de Javé se tornaram mais consoladores: prometia salvar seu povo, agora que tinham aprendido a lição, e trazê-lo de volta pra casa. As autoridades babilônias permitiam a Jeremias ficar em Judá, e para manifestar sua confiança no futuro ele comprou algumas propriedades: “Porque assim diz Javé Sabaoth (o ‘Senhor dos Exércitos’): ‘Ainda se comprarão casas, e campos, e vinhas nesta terra’” (Jeremias, 32:15).

Mas algumas pessoas em Israel culpavam Deus pela catástrofe. Durante uma visita ao Egito, Jeremias encontrou um grupo de judeus que fugira para a área do Delta e não queria saber de Javé. As mulheres deles alegavam que tudo estava ótimo enquanto haviam realizado os ritos tradicionais em honra de Ishtar, Rainha do Céu, mas assim que os tinham interrompido, estimulados por tipos como Jeremias, vieram a tragédia, a derrota e a miséria. Mas essa situação pareceu aprofundar a intuição de Jeremias. Após a queda de Jerusalém e a destruição do Templo, ele passou a compreender que tais aspectos externos da religião não passavam de símbolos de um estado interno, subjetivo. No futuro, a Aliança com Israel seria bastante diferente:

“Porei a minha Lei no seu interior, e a escreverei em seu coração” (Jeremias, 31:33).

Curioso perceber que essa divisão entre duas linhas distintas do pensamento religioso permanece até os nossos dias: entre cristãos, persistem as disputas entre um grupo crescente que acredita que se aproximar de Deus só vale a pena se Ele os abençoar com todas as graças e bênçãos materiais possíveis (ontem era a colheita e a saúde dos rebanhos – hoje é uma promoção no emprego ou o sucesso nos negócios) e um outro grande grupo que entende essa Busca mais como entrega espiritual e aprendizado do que uma procura por um retorno material imediato. A meu ver, o que mais faltou até hoje na história do cristianismo, foi a noção do "Caminho do Meio" dos orientais. - Enquanto praticamente todos os maiores santos católicos escolheram uma vida de puro sofrimento em prol dos pobres e desfavorecidos, optando por um Caminho da Cruz estreitíssimo que só seria possível de ser seguido por poucos, a maioria dos "novos cristãos" (pentecostais e neo-pentecostais) persegue bençãos materiais abundantes e sucesso profissional, numa espécie de “barganha com Deus”, deixando de lado o sentido profundo e sublime da religião: o Amor ao próximo. A importância do Caminho do Meio continua distante e incompreendida, embora já tivesse sido vislumbrada há séculos por um dos maiores santos e pensadores cristãos da História, Agostinho de Hipona, que compreendeu que a melhor regra de disciplina é conservar a justa medida, longe dos extremos.


Tentativas de ilustrar as visões de Ezequiel - Rodas e criaturas híbridas

Os judeus que foram para o exílio não tiveram de assimilar-se, como ocorrera com as dez tribos setentrionais em 722 aC. Viviam em duas comunidades: uma na própria Babilônia e a outra nas margens de um canal que partia do Eufrates chamado Chebar, numa área que chamaram de “Tel Aviv” (‘Monte da Primavera’). Entre a primeira leva de exilados deportados em 597 aC havia um sacerdote chamado Ezequiel. Durante cerca de cinco anos ele permaneceu sozinho em casa sem falar com ninguém. Depois teve uma dilacerante visão do Divino, que literalmente o derrubou. É importante descrever sua primeira visão com um mínimo de detalhes, porque – séculos depois – se tornaria muito importante para os misticismo universal:

Ezequiel viu uma nuvem de fogo, cruzada por raios. Um vento forte soprava do norte. No meio dessa tempestuosa escuridão, ele pareceu ver – ele tem o cuidado de enfatizar a natureza provisória das imagens – uma grande Carruagem puxada por quatro fortes bestas. Pareciam os karibu (seres híbridos meio fera meio homem) esculpidos nos portões do palácio em Babilônia, mas Ezequiel torna quase impossível visualizá-las: cada uma tinha quatro cabeças – com o rosto de um homem, um leão, um touro e uma águia. Cada uma das rodas rolava numa direção diferente das outras. A imagística parece simplesmente servir para enfatizar o estranho impacto das visões que ele tentava articular. O bater das asas das criaturas era ensurdecedor, “soava como água correndo, como a voz de Shaddai, uma voz como uma tempestade, como o barulho de um acampamento”. Na Carruagem havia algo que “parecia ser um trono”, e sentado com grande pompa viu um ”ser que parecia um homem”: brilhava como bronze, e de seus membros se irradiavam raios. Era também “algo que parecia a ‘Glória’ (‘Kavod’) de Javé”. Ezequiel prostrou-se imediatamente no chão e ouviu uma voz que lhe falava...

A voz chamou-o de “filho do homem”, como que para acentuar a distância que naquele momento havia entre a humanidade e o Reino Divino. Também aqui a visão de Javé seria seguida por um plano prático de ação, Ezequiel devia disseminar a Palavra de Deus entre os filhos rebeldes de Israel. O tom não humano da Mensagem Divina era transmitido por uma imagem fortíssima: uma mão estendida para o profeta, agarrando um rolo, coberto de lamentos e gemidos. Ezequiel recebeu a ordem de comer o rolo, para ingerir a Palavra e fazê-la parte de si. Como de hábito, o Misterium era Fascinans, além de Terrible: o rolo revelou ser doce como mel. Por fim, disse Ezequiel: “O Espírito me levantou, e me levou; e eu me fui mui triste, pelo ardor do meu espírito. Porém, a Mão de Javé era forte sobre mim” (Ezequiel, 3:14-15). Chegou a Tel Aviv e ali quedou-se ”como estonteado” por toda uma semana.


Nos tempos modernos não faltaram interpretações ufológicas para as visões de Ezequiel

A estranha carreira de Ezequiel acentua como o Mundo Divino se tornara alheio e estranho para a humanidade. Ele próprio foi obrigado a tornar-se um sinal dessa estranheza. Com freqüência, lhe era ordenado que praticasse "mímicas" estranhas, que o separavam dos seres humanos normais. Essas mímicas ou interpretações parecem também se destinar a demonstrar os apuros de Israel durante essa crise, e, num nível mais profundo, mostravam que o próprio Israel estava se tornando um estranho num mundo pagão.

A visão pagã, por outro lado, celebrava a continuidade que se acreditavam existir entre os deuses e o mundo físico. Ezequiel não encontrou nada de consolador nessas velhas religiões, que ele chamava de impuras. Numa de suas visões, foi levado a uma torre dourada do Templo de Jerusalém. Para seu horror, viu que, mesmo encontrando-se à beira da destruição, o povo de Judá ainda adorava deuses pagãos no Templo de Javé. O próprio Templo se tornara um lugar como que de pesadelo: as palavras nas suas salas estavam pintadas com serpentes enroscadas e animais repulsivos; os sacerdotes realizavam ritos ”imundos” sob uma luz sórdida, como se dedicados ao sexo escuso. Em outra câmara, mulheres choravam pelo ‘deus sofredor’ Tammuz. Outros adoravam o sol, de costas para o santuário. “Viste, porventura, filho do homem, o que os anciãos da casa de Israel fazem nas trevas, cada um em sua câmara pintada?” (Ezequiel, 8:12). Por fim, o profeta viu a estranha Carruagem que lhe surgira na primeira visão voar para longe, levando consigo a Glória de Javé.

Contudo, Javé não era uma divindade totalmente distante. Nos derradeiros dias antes da destruição de Jerusalém, Ezequiel descreve-o fulminando o povo de Israel, numa tentativa de chamar sua atenção a reconhecê-lo. Israel só podia culpar-se a si mesmo pela catástrofe iminente. Javé encorajava israelitas como Ezequiel a ver que os golpes da História não eram aleatórios nem arbitrários, mas tinham lógica e justiça mais profundas, que os homens não podiam compreender.


Fontes e bibliografia:
Profº Dirceu Fernando Belotto;
"A History of God, the 4000 year quest of Judaísm, Cristianity and Islam", 1993 - Karen Armstrong.



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